Entrar na Oficina de Artesanato César, em Ermesinde, é fazer uma viagem no tempo. Ali as coisas pouco mudaram. Os processos continuam a ser sobretudo manuais e os funcionários são uma família, ou não fossem mesmo avós, pais e netos. E ainda estão em uso algumas máquinas criadas pelas mãos do fundador.

A comemorar este ano 75 anos de existência, a empresa continua a dedicar-se à produção de bombos e tambores e também, apesar de em menor quantidade que noutros tempos, aos brinquedos de madeira.

Ainda que se tenha afastado da gestão, as mãos hábeis de Aurélio Ferreira, que começou a trabalhar na empresa do pai com apenas oito anos, ainda dão uma ajudinha na produção. “Sou artesão de nascença/desde sempre fui assim/com muita fé e muita crença/idealizei brinquedos sem fim”, diz, em quadra, o homem de 83 anos.

“Chegamos a vender, por mês, três mil dúzias de pandeiretas, 30 mil dúzias por ano”

A história é fácil de contar e será idêntica a muitas empresas familiares daquela altura. Mas contada pela voz de Aurélio Ferreira, que põe visível orgulho em cada palavra cada vez que fala do pai, ganha outra força.

“O meu pai [César Duarte Ferreira] era empregado num irmão da minha avó, num tio dele, e, em 1943, ele resolveu deixar o patrão e estabelecer-se por conta própria”. Começou do nada, sem dinheiro e pediu a um amigo para fazer as primeiras máquinas, todas em madeira. Dedicou-se a produzir tambores, bombos e pandeiretas e também brinquedos típicos da época. “Aí começou a vida amarga. Antes, quando trabalhava no patrão, era até às 18h00 e vinha-se embora. Depois trabalhava até à meia-noite, mas com gosto pela vida”, garante o filho, Aurélio Ferreira.

Também ele, agora com 83 anos, se lançou cedo nesta arte. “Eu tinha oito anos e vinha da escola e em vez de ir para a brincadeira vinha ajudá-lo no que podia e sabia”, recorda o sénior que, ainda hoje, não deixa o trabalho, apesar de ter passado a gestão da Oficina ao genro e ao neto há alguns anos.

A empresa desenvolveu-se e cresceu e prosperou. “Chegamos a vender, por mês, três mil dúzias de pandeiretas, 30 mil dúzias por ano, entre 1975 e 1980”, assegura. A isso acrescia a produção de milhares de brinquedos de madeira, desde camionetas a caros de bois, de bonecas, pombas, ciclistas, trapezistas… elenca, sentado ao lado de uma máquina, uma enroladeira, que tem a mesma idade da empresa, e que ainda está em uso. “Agora o artesanato praticamente não tem venda”, lamenta, salientando o valor do trabalho que ali é feito: “Pode haver muitas invenções, mas isto é feito à mão. Não há máquinas para isto”.

Aurélio Ferreira diz-se satisfeito por ter quem mantenha vivo um negócio que não gostava de ver morrer. “Tenho todo o prazer em seguir as pisadas do meu pai e em ter um genro e um neto que seguem as minhas pisadas. Isso é que eu tenho mais orgulho. Há 75 anos que trabalho nesta arte”, narra.

“Estou aqui há 33 anos. A gente quando faz uma coisa com gosto adapta-se bem”

Aos 65, Aurélio Ferreira “reformou-se” e passou o negócio ao genro Manuel Gonçalves. Ele, que tinha passado pela agricultura e trabalhava como serralheiro, rapidamente se adaptou. “Casei e comecei a trabalhar aqui como artesão. Estou aqui há 33 anos. A gente quando faz uma coisa com gosto adapta-se bem”, afirma o homem de 59 anos.

Começou por serras brinquedos, arcos para bombos e depois passou para a montagem de bombos e de brinquedos. “Há 30 anos fazia-se muitos brinquedos. Mas de há 20 anos para cá o artesanato tem-se perdido um bocado de vender. Em compensação vende-se mais os bombos” e outros instrumentos de percussão, resume.

Sobretudo pelo revivalismo dos mais velhos, que ainda se lembram dos brinquedos de outrora, ainda se vão vendendo alguns exemplares. “Os brinquedos mais tradicionais que sempre se venderam bem e que sempre se vão vendendo, são o ciclista e a pomba”, adianta.

Em tempos, as produções eram outras. “Eu sei que por exemplo andávamos nos 600 carros de bebés, os ciclistas eram 4.000 a 5.000, pombas também era à volta disso, 5.000 a 6.000 mil, mas isso já aos anos que a gente não anda”, conta Manuel Gonçalves.  “O carro de bebé, que era uma coisa que se vendia muito, de há uns anos para cá é raro vender”, dá como exemplo.

Hoje, a produção está mais focada nos instrumentos de percussão. “Do bombo mais pequeno deve-se vender à volta de 3.000 a 4.000”, diz o empresário.

“Manter uma tradição com tantas décadas é motivo de orgulho”

César Gonçalves juntou-se ao negócio em 2011. Veio ajudar o pai na gestão. “Nasci neste meio e tenho várias memórias de infância. Costumava estar aqui na oficina a dormir enquanto os outros trabalhavam. Lembro-me de estar junto ao meu pai nas máquinas a vê-lo trabalhar também”, recorda.

Estudou, especializou-se em electrotecnia e ainda trabalhou na área, mas acabou por vir para o negócio da família. Também para não o deixar morrer. “Faço um bocadinho de tudo, estou mais na parte da gestão e montagem dos instrumentos. Mas se for preciso ir para a parte da maquinaria também vou”, refere, dizendo que poder trabalhar com a família (a esposa também lá trabalha) é uma mais-valia.

Já não vendem como há 40 ou 50 anos atrás, confessa o empresário, mas o negócio também já viveu piores dias. “Actualmente vendemos mais os bombos, quer seja os bombos de romaria para crianças que se vêem nas feiras quer seja os instrumentos profissionais, um bocadinho impulsionados pela criação de vários grupos em Portugal. Também vendemos adufes e pandeiretas razoavelmente bem. A nível dos brinquedos já tivemos melhores dias, embora nos últimos anos tenha havido uma procura crescente, quer a nível nacional quer a nível internacional”, explica o jovem de 32 anos. Cerca de 97 a 98% do mercado é nacional, mas também vendem para Espanha, França e Canadá.

Nos brinquedos a diferença de produção e vendas é “abismal”, afirma. Os mais procurados são a camioneta, o carro de bebé ou o trapezista. “É mais rentável produzir os instrumentos que os brinquedos”, confessa.

Actualmente trabalham na Oficina de Artesanato César ele e a esposa, os pais, os avós e um funcionário. Já chegaram a ser 30 pessoas.

Este ano, voltarão a estar na Feira do Brinquedo, em Alfena, a divulgar o que se faz no concelho. “Tem sempre muitos visitantes e acaba por ser uma mais-valia. Nas poucas feiras que fazemos há várias pessoas que nos abordam e trazem memórias de brinquedos do passado. Isso é gratificante”, confirma César Gonçalves.

Fazer 75 anos é um marco significativo, sustenta o jovem empresário. “Acho que já passamos por fases mais difíceis e demos a volta”, garante, adiantando que os objectivos passam por manter o negócio e, se possível, fazê-lo crescer e encontrar novos mercados. “Manter uma tradição com tantas décadas é motivo de orgulho”, conclui.