José Baptista Pereira

Todos os anos há dois momentos em que os jornais publicitam por encomenda a existência de “falsas urgências” nos hospitais. Um desses momentos é o mês de Agosto altura em que muitos médicos ainda vão de férias. O outro, por volta de Janeiro, devido à maior afluência de doentes com gripe ou com receio de a ter. Há cerca de 40 anos que assisto à publicitação deste falso problema, ano após ano. Porque é um falso problema? Porque se fosse um problema verdadeiro, e realmente preocupante, seria inacreditável que não estivesse resolvido ao fim de tantos anos.

A verdade é que aos hospitais só interessa divulgar este problema nesta altura do ano para justificar a possibilidade de haver demoras no atendimento. Nos restantes dias do ano a presença dos doentes no Serviço de Urgência é benéfica e benvida porque é uma das principais componentes para o cálculo do seu financiamento anual.

O que são falsas urgências? Aquelas que os médicos acham que não merecem ser atendidas no hospital? E para os doentes, o que são falsas urgências? Ninguém tem prazer em esperar horas e horas, numa sala de hospital à espera de uma consulta, se não pensa que o seu problema é urgente. Mesmo para os profissionais de saúde esta diferenciação não é linear. Tudo depende do lado em que nos encontramos.

Apesar da globalização do acesso ao conhecimento através da net, há muita desinformação e contrainformação que confunde mesmo quem julga estar informado.
Se por um lado uns ensinam a auto confiança dizendo “não procure o médico aos primeiros sintomas”, “use a medicação de conforto – medicamentos para as dores e para a febre – que deve ter sempre em casa”, “só deve recorrer ao médico se não melhorar”,outros incentivam-nos a procurar o hospital à mínima duvida porque lá é a “fonte segura”, está aberto 24 horas, fazem logo os exames que precisam e não há restrição no acesso. Nem as taxas moderadoras servem para moderar. A maior parte dos que recorrem a ao Serviço de Urgência Hospitalar por motivações menos importantes são isentos. Os que pagam, ou têm subsistemas que pagam por eles, já recorrem muito mais a hospitais privados.

Mas se na verdade os hospitais estivessem interessados em resolver o problema solicitavam a restrição no acesso à urgência. Doentes com critérios para pulseira azul ou verde não teriam acesso ao Serviço de Urgência, excepto quando enviados pelo seu Médico de Família. Já houve quem pensasse fazê-lo mas nunca o pôs em prática. Estou certo que a diminuição das consultas nos Serviços de Urgência seria bastante significativa.

Os doentes informados e prudentes não procuram o médico aos primeiros sintomas. Têm medicação de conforto em casa para as primeiras medidas de controlo (febre, dores) e sabem que têm sempre tempo de aceder nos dias seguintes à Unidade de Saúde onde se encontram inscritos. Os doentes interessados sabem o horário de Consulta Aberta ou de Consulta Não Programada do seu Médico de Família (se não se recorda informa-se pelo telefone) e sabe que será atendido no próprio dia em que solicita essa consulta. Todas as Unidades de Saúde dos Cuidados de Saúde Primários têm a obrigação de atender os doentes com problemas agudos (sintomas que se iniciaram no dia ou nos dias anteriores) no próprio dia em que é solicitada a consulta. A consulta será efectuada entre as 8 e as 20 horas. Não necessariamente à hora que o doente quer. Nesta consulta o médico avaliará o problema e orientará o doente da forma que achar mais adequada. Pode, inclusive, encontrar justificação para o encaminhar para um Serviço de Urgência. Nesse caso o doente será portador de uma informação clínica o que facilitará o atendimento naquela unidade hospitalar. Na maioria dos casos, o Médico de Família pode resolver o problema de imediato ou marcar novas consultas de vigilância sem recurso a cuidados hospitalares.

O que é necessário é que os utentes se interessem em saber como funciona a Unidade de Saúde onde se encontram inscritos, quais são os horários de atendimento do seu Médico de Família e do seu Enfermeiro de Família, o que devem fazer para usufruir dos seus serviços de forma adequada e sem atropelos nem esperas. Mas este é o maior problema. Quase todos sabem e apregoam os seus direitos. Mas há direitos e deveres e destes poucos querem saber. Apesar de todas estas informações estarem obrigatoriamente disponíveis nas unidades de saúde, seja através dos secretários clínicos, seja afixadas na parede, seja em “Guias de Acolhimento do Utente” mais ou menos extensos e espalhados pelas salas de espera, são poucos os que as lêem, são poucos os que se interessam por saber e são muito poucos os que as sabem.

A desinformação e o défice de cidadania conduzem a atitudes de descredibilização sem razão e a dificuldades de acesso injustificadas. Os números de doentes atendidos diariamente nas Unidades de Saúde do SNS são muito superiores aos números de doentes atendidos nas unidades privadas. O seu financiamento é substancialmente diferente e sujeito às regras de austeridade do Estado. Não podemos comparar o incomparável. Mesmo assim a qualidade dos serviços prestados nas Unidades de Saúde do SNS tem melhorado muito. Merecem uma atenção particular do Governo porque se tornaram mais eficientes. Merecem um maior reconhecimento dos utentes que continuam numa atitude desconfiada.