Ser diagnosticado com esclerose múltipla é um choque, reconhecem os portadores da doença. Mas ultrapassado o impacto inicial, sendo detectada de forma precoce e com a devida medicação, é possível levar uma ‘vida normal’ e com qualidade.

Quatro doentes da Consulta Multidisciplinar de Neurologia do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS), que realizou, esta quarta-feira, um encontro para assinalar o Dia Mundial da Pessoa com Esclerose Múltipla, explicam como é lidar com a doença. E são unânimes: não pensam no futuro. Escolhem viver um dia de cada vez.

“Receber a notícia de que era esclerose múltipla foi como cair ao fundo de um poço. Eu não queria acreditar que me estava a acontecer a mim”

A esclerose múltipla é uma doença crónica, inflamatória e degenerativa, que afecta o Sistema Nervoso Central. Surge frequentemente entre os 20 e os 40 anos de idade e afecta com maior incidência as mulheres do que os homens.

Segundo a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), em Portugal, a doença afecta cerca de 8.000 pessoas e, no mundo, as estimativas apontam que 2,5 milhões de pessoas sejam portadoras de esclerose múltipla. Entre os sintomas mais comuns estão a fadiga, distúrbios de equilíbrio e coordenação, dificuldades cognitivas, visão turva, fraqueza muscular, alterações de sensibilidade e dormência, associados a várias patologias e que nem sempre permitem logo o diagnóstico.

É o caso de Anabela Sousa, de Vilela, Paredes. “Descobri que tinha esclerose múltipla aos 24 anos, foi só aí que tive o diagnóstico, mas depois de ter conhecimento dos sintomas percebi que já tinha a doença há cerca de cinco anos atrás”, conta a jovem, agora com 30 anos.

“Sair da cama e descer a escadaria, porque os quartos eram no segundo andar, faziam-me sentar no sofá já cansada, de rastos, como se me tivesse passado um camião por cima. Tinha formigueiros e pernas cansadas e pesadas. Ao subir as escadas parecia que pesavam 50 quilos cada uma. Tinha também bastantes desequilíbrios e deixei por exemplo de conseguir andar de saltos altos. E também comecei a notar muita descoordenação na escrita e no uso dos talheres”, recorda.

Foi dando nota dos problemas à médica de família. Acabou por ser internada e, numa semana, fez vários exames, como uma ressonância magnética e uma punção lombar. Cerca de um mês depois teve o diagnóstico.

“Receber a notícia de que era esclerose múltipla foi como cair ao fundo de um poço. Nesse dia a única coisa que fui capaz de dizer na consulta foi ‘bom dia’. Não fui capaz de perguntar nada. Eu não queria acreditar que me estava a acontecer a mim”, conta Anabela Sousa.

“Tento não pensar muito no que me poderá ou não acontecer. Não pode haver negatividade”

Seguiu-se “uma semana de luto”. “Não trabalhei, não saí de casa e chorei. Achei que a minha vida tinha acabado ali e os meus projectos tinham acabado. Pensava que ia ficar em cadeira de rodas”, assume.

Com a ajuda da equipa da Consulta Multidisciplinar de Neurologia começou então a fazer um caminho para voltar a perspectivar o futuro. “Realmente temos um futuro como qualquer outra pessoa, simplesmente temos mais uma doença com a qual temos que aprender a lutar”, diz a paredense.

Pelo caminho teve dois surtos, dos quais recuperou totalmente, casou e leva uma ‘vida normal’. “Agora penso em ter filhos, é o meu próximo passo”, adianta.

No futuro não pensa, vive o presente. “Tento não pensar muito no que me poderá ou não acontecer. Não pode haver negatividade”, defende.

“Esta doença é a doença das mil caras. Há pessoas que ficam de cadeiras de rodas, mas também há muitas que não ficam e é preciso perceber que se pode viver bem com a doença”

O diagnóstico de Juliana Pinto, do Marco de Canaveses, só chegou no final do ano passado. Mas também esta jovem, de 26 anos, reconhece que os sintomas já tinham surgido mais cedo.

O primeiro surto terá acontecido em 2016. Desvalorizou-o. “Fiquei com o lado direito do corpo dormente, perdi sensibilidade e fiquei com a temperatura do corpo alterada. Pensei que tinha dormido mal e deixei estar. Só no outro dia fui às urgências”, lembra. Suspeitaram que tinha sofrido um AVC, ficou internada, fez exames, mas não se chegou a nenhuma conclusão. Até que, um ano depois, voltou a ficar com pés e pernas dormentes. Fez mais exames e só aí surgiram as palavras “esclerose múltipla”.

“Quando disseram foi um choque. Não quis fazer perguntas. Fui para casa. Claro que caí no erro de ir à internet e ver os piores cenários da doença”, confessa Juliana Pinto. “Quando voltei aqui à consulta disseram-me uma coisa que nunca mais esqueci. Normalmente perguntamos ‘porquê eu’ e o que me fizeram pensar foi ‘porque não eu’”, recorda.

A reacção da família também foi difícil: “A minha mãe foi-se abaixo porque pensou que era esclerose lateral amiotrófica e o meu marido chorou, agora olham para mim e confiam que vai correr bem”.

Por agora, toma a medicação e leva uma vida normal. “Penso no dia de hoje e tento não pensar no de amanhã, vivo um dia de cada vez. Casei no ano passado, agora vêm os filhos, não penso muito na doença”, explica a jovem  do Marco de Canaveses.

“Esta doença é a doença das mil caras. Há pessoas que ficam de cadeiras de rodas, mas também há muitas que não ficam e é preciso perceber que se pode viver bem com a doença”, salienta.

“Acabei por perceber que nem sempre vai passar. Que faz parte. É uma doença progressiva e degenerativa. Os tratamentos e as medicações ajudam a atrasar o processo mas não curam.”

Vânia Lopes deixou de sentir o tórax do lado direito, sentia choques eléctricos pela espinha ao baixar o pescoço e formigueiros fora do comum. Mas a jovem de 31 anos, natural de Ermesinde mas que vive em Paços de Ferreira, associava tudo ao cansaço e à vida stressante.

Tinha sido mãe e a filha, na altura com 16 meses, estava a começar a andar. “Ia sentindo umas coisas mas relevei. Pensava ‘isto é cansaço, é exaustão’”, assume.

Por insistência do marido foi a uma consulta com a médica de família e fez vários exames. Como nada foi detectado foi encaminhada para a consulta de Neurologia. “Logo no exame físico percebi que já suspeitavam de alguma coisa. E fiz uma ressonância de urgência onde já apareciam lesões graves”, conta.

O diagnóstico oficial chegaria em Outubro de 2016. Fez medicação com corticóides e os sintomas passaram. Mas nos surtos seguintes já ficou com mazelas. “Tive vários episódios. Deixei de andar, perdi a coordenação nas mãos, no último surto perdi a visão do olho direito, que ainda não recuperei totalmente”, refere a jovem.

Depois do segundo grande surto, em Janeiro do ano passado, quando percebeu que a medicação não resolvia tudo, entrou em depressão. Foi acompanhada na Psiquiatria e na Fisioterapia. “Acabei por perceber que nem sempre vai passar. Que faz parte. É uma doença progressiva e degenerativa. Os tratamentos e as medicações ajudam a atrasar o processo mas não curam. É uma doença sem cura e temos que nos mentalizar disso”, sustenta Vânia Lopes.

“Se disser que não tenho medo do futuro minto, sobretudo porque tenho uma filha e quero acompanhar o futuro dela. Mesmo que no futuro tenha mais limitações”

Essa mentalização é importante para ter qualidade de vida. “Se fizermos o que nos faz bem e formos felizes até nos esquecemos que andamos coxas ou de canadianas”, brinca. Trabalhava num hipermercado, mas o design sempre foi a sua paixão. Agarrou-se a um projecto, o Sweet’Art, que passou a encarar de forma mais profissional. Faz trabalhos de artes gráficas, desde ilustrações a personalizações de t-shirts e pins, que divulga no Facebook. “Tornou-se numa coisa a sério, tenho clientes, encomendas e trabalho e isso motiva”, garante. Esta quarta-feira apresentou também o logotipo da Consulta de Neurologia do CHTS, que ela desenvolveu com o apoio do marido.

Não esconde que passou fases difíceis, sobretudo quando deixou de conseguir pegar a filha ao colo. “Actualmente não consigo caminhar com ela ao colo mas consigo pegar-lhe. Ela sempre foi o meu foco para não desistir. Pergunta-me todos os dias ‘então mamã, estás melhor das perninhas hoje’. Eu digo-lhe sempre que sim. E ela diz-me ‘amanhã vais estar ainda melhor’”, revela a natural de Ermesinde.

“Se disser que não tenho medo do futuro minto, sobretudo porque tenho uma filha e quero acompanhar o futuro dela. Mesmo que no futuro tenha mais limitações”, salienta Vânia Lopes.

“Quando se pensa em esclerose múltipla pensa-se em incapacitante, cadeira de rodas, o fim. Nós continuamos capazes se quisermos. Temos é que querer. É possível viver com qualidade, mas é preciso lutar por isso. Eu sou a prova viva de que é possível”, sustenta a jovem.

“Ouvir o diagnóstico não foi fácil. Fui consultar a internet e aparecia muita coisa. Isso ainda assustou mais. Segue-se uma fase de negação”

E se a doença interromper sonhos é preciso adaptar-se. Foi o que fez Paulo Peixoto. Em 2012, o jovem de Vizela, agora com 28 anos, agente da PSP estava a trabalhar e começou a ficar com visão dupla e turva, perdeu o equilíbrio e caiu em frente à Embaixada de Espanha em Lisboa.

Foi atendido no Hospital Militar de Lisboa, passou pelo Hospital da Luz em Guimarães, mas só no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa recebeu o diagnóstico final. “Ouvir o diagnóstico não foi fácil. Fui consultar a internet e aparecia muita coisa. Isso ainda assustou mais. Segue-se uma fase de negação”, confessa.

Mais uma vez, os sintomas tinham começado antes. “Fazia atletismo no Exército e sempre que fazia grandes esforços chegava a ter fases em que via apenas três cores, tinha desequilíbrios e formigueiros, mas pensava que era do esforço”, explica.

Com o tempo, foi adaptando a vida à doença e foi-se apercebendo que podia levar uma vida normal. Continua a trabalhar na PSP, apesar de ter ajustado os horários. Deixou de fazer noites e manhãs que lhe traziam cansaço e lhe causavam paralisia do sono. E já teve alguns surtos ligados à visão, pernas e equilíbrio.

“Já tive mais medo do futuro numa fase inicial, agora já não me preocupa tanto. Já lido melhor com a doença”, sustenta.

Mas Paulo Peixoto não esconde que a doença lhe roubou um dos sonhos. “Estava na escola de sargentos do Exército e faltavam três a quatro meses para poder candidatar-me ao corpo de intervenção da PSP. A esclerose múltipla tirou-me o que eu mais queria”, lamenta.

“Cada vez mais importa personalizar a doença, porque cada pessoa tem a sua esclerose múltipla”

Os últimos estudos apontam para cerca de 8.000 o número de pessoas em Portugal que sofre de esclerose múltipla, “mas há muitas pessoas que têm a doença e ainda não sabem e muitas que estão diagnosticadas com doenças semelhantes e que entretanto acabarão por ser consideradas esclerose múltipla”, acredita Jorge Ascensão, psicólogo clínico da SPEM.

O facto de os sintomas agora serem reconhecidos mais cedo é uma vantagem, sustenta. “Há cerca de 10 anos atrás ouvíamos histórias de pessoas que estiveram 15 a 20 anos a ser mal diagnosticadas. Nós sabemos que quanto mais cedo for detectada a doença e quanto mais cedo arrancar o tratamento, menos vai evoluir”, explica.

Jorge Ascensão não esconde que ainda há muitas dúvidas a tirar sobre a doença, mas que hoje em dia há mais informação para os profissionais para se especializarem.

“Há que ver a esclerose múltipla como algo que deve motivar apesar das limitações a fazer mais e melhor. Não devem ver isto como algo com que se devem conformar, mas algo que têm que integrar na sua vida. Um formigueiro numa mão pode limitar a carreira de um pianista, pode fazer com que um padeiro tenha que adaptar a sua profissão ou pode ser inócuo. Cada vez mais importa personalizar a doença, porque cada pessoa tem a sua esclerose múltipla”, defendeu esta manhã no Hospital Padre Américo, em Penafiel.

Pensamento semelhante tem Carla Fraga, directora do serviço de Neurologia e responsável pela consulta de Esclerose Múltipla neste centro hospitalar. “É uma doença para um doente e não cabem todos no mesmo saco”, disse.

Neste serviço do CHTS são acompanhados cerca de cem doentes, sobretudo mulheres, mas também muitos homens. “A primeira consulta é a consulta das lágrimas. De tudo aquilo que digo acho que só ouvem o nome. A partir daí não ouvem mais nada. O que fazemos sempre é dois dias depois voltar a chamar o doente e ver o que percebeu, o que não percebeu e tirar todas as dúvidas que tem”, explica a responsável pela consulta de Esclerose Múltipla.

“Detectada precocemente e com medicação adequada a esclerose múltipla permite viver com qualidade na maioria dos casos. A maior dos doentes que estava nesta plateia são saudáveis, podiam estar noutra plateia qualquer e no entanto alguns têm cargas lesionais elevadas da doença. Mas controlados têm autonomia e qualidade de vida que não implica deficiência motora associada”, salienta a médica.