Carbono-14 e Vinho do Porto

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Fernando Sena Esteves
Fernando Sena Esteves

O ano de 1975 foi muito marcante na minha vida profissional devido a um ímpar conjunto de circunstâncias. Tinha-se construído, num logradouro da Faculdade de Farmácia do Porto, onde era professor, um pequeno pavilhão de dois pisos para a manipulação de produtos radioativos: integrava o Centro de Estudos de Bioquímica do Instituto de Alta Cultura (CEBIAC), anexo à Faculdade. O isolamento intencional desse pavilhão no logradouro teve o efeito de o poupar ao tremendo incêndio que destruiu as instalações principais da Faculdade (e as restantes do CEBIAC) em maio desse ano.

Ora aconteceu por essa altura que em laboratórios alemães foi detetado em Vinhos do Porto álcool com valores anormalmente baixos de carbono-14. Este elemento radioativo natural existe na atmosfera por ação dos raios cósmicos sobre o azoto e, na forma de CO2, é incorporado pelas plantas na fotossíntese. Deste processo originam-se compostos, como o açúcar das uvas, com uma pequena porção de carbono-14 (ou C14) radioativo, o qual representa a respetiva concentração na atmosfera. Uma vez formado, o C14 perde a sua radioatividade paulatinamente, reduzindo-se a metade em cada período de 5730 anos. Esta realidade está na base de se poder determinar a idade de objetos consoante o teor de C14. Uma arca de madeira, por exemplo, contém o teor de C14 correspondente ao da atmosfera no momento em que foi abatida a árvore de onde se obteve a madeira. Aí cessa a captação de CO2 pela fotossíntese e o seu C14 vai perdendo lentamente a radioatividade, podendo-se então avaliar a idade do objeto medindo o seu valor remanescente. Decorridos uns 50000 anos, a radioatividade do C14 é praticamente nula, como é o caso do petróleo ou do carvão fóssil.

Na preparação do Vinho do Porto, a fermentação que converte o açúcar das uvas em álcool interrompe-se pela adição de aguardente vínica de modo a dar um teor alcoólico próximo de 20%. Além de interromper a fermentação, este teor alcoólico elevado contribui para a conservação do vinho produzido. O vinho fica mais ou menos doce consoante a adição da aguardente tiver sido efetuada mais cedo (fica mais doce) ou mais tarde (fica menos doce). Também se pode usar álcool vínico na preparação do Vinho do Porto ou no ajuste do teor alcoólico que tem de se fazer no envelhecimento em recipientes de madeira.

Aconteceu a importação de grande quantidade de álcool tido como vínico, o qual foi usado no Vinho do Porto e que causou a anomalia detetada na Alemanha: é que o álcool não tinha resultado da fermentação de uvas e posterior destilação, mas fora produzido por síntese química a partir de materiais fósseis. Daí o baixo teor em C14. Este facto não tinha qualquer inconveniente para a saúde, mas sim para a qualificação alfandegária como produto natural e, obviamente, para o prestígio do vinho produzido, note-se bem, na primeira região vinícola demarcada em todo o mundo.

Para tentar uma saída favorável para este assunto, desloquei-me a Berlim juntamente com um técnico do Instituto do Vinho do Porto e outro da Junta de Energia Nuclear. Com os técnicos alemães foi possível chegar a um acordo sobre o teor mínimo de C14 que o Vinho do Porto deveria apresentar e a partir daí entrou em ação o equipamento existente no referido pavilhão do CEBIAC que durante anos esteve a medir o C14 em Vinhos do Porto, aguardentes e álcool para orientar as exportações.

Menos grata foi a deslocação a Itália. Na companhia do Prof. Carvalho Guerra, diretor do CEBIAC, encontrámo-nos com um professor da Universidade de Milão que afirmava ter encontrado num Vinho do Porto álcool com C14 num único dos seus dois átomos de carbono, prova de uma adulteração para mascarar a falta de C14 em álcool natural. Em resultado de tão séria acusação, tinha ficado retida numa alfândega italiana uma encomenda de Vinho do Porto. Tínhamos a certeza de que o exportador, que não era dos mais importantes, não tinha cometido tal adulteração, afirmámo-lo rotundamente ao nosso colega de Milão, dizendo-lhe que nos propúnhamos demonstrar que se tinha enganado. Não foi preciso demonstrar coisa alguma, pois passadas poucas semanas a encomenda foi desalfandegada sem mais problemas.

Foi com grande contentamento que pudemos participar nesta ação de defesa de um produto tão importante para a economia nacional e sentimo-nos honrados quando em 1983, numa cerimónia muito bonita, a Confraria do Vinho do Porto nos conferiu, ao Prof. Carvalho Guerra e a mim, o grau de Cavaleiro daquela instituição.