Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Nos últimos meses, muitos voluntários se têm dedicado a ajudar o povo ucraniano. Muitos deles depararam-se com cenários marcantes e relatos de dificuldades difíceis de digerir.

Para aliviar estas pessoas e evitar que cheguem à exaustão emocional, o Serviço de Psicologia do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS) foi desafiado e criou “um programa pioneiro” de apoio psicológico gratuito a voluntários de missões humanitárias, para que possam continuar a ajudar “quem mais precisa”.

A primeira sessão já foi realizada e as partilhas dos voluntários serão usadas para traçar o caminho das próximas. A meta é que possam ser superadas “as fragilidades emocionais crescentes, decorrentes da empatia pelo sofrimento dos refugiados e a impotência perante os factos vivenciados”, identificando e prevenindo o agravamento de alguns quadros clínicos.

Foi constituído o GAM- Grupo de Ajuda Mútua e serão realizadas, pelo menos, oito sessões de grupo, e individuais para casos mais complexos, em formato presencial /ou online, nos próximos meses.

Os profissionais de saúde mental do CHTS, também eles voluntários neste projecto, alertam que é preciso que o voluntário “não se esqueça de si próprio e de descansar” e que cuide da sua saúde física e mental.

“Já estive em missões humanitárias mais sangrentas, nestas não vi uma gota de sangue, no entanto estas foram as que me fizeram chorar mais vezes”

A partilha de experiências permitiu encontrar pontos de encontro nas dificuldades encontradas por quem tem dedicado os seus dias a apoiar refugiados ucranianos, no país ou em missões de resgate e entrega de apoios ao país. Há o cansaço, provocado por uma situação que se arrasta, quer nos próprios voluntários quer nas famílias de acolhimento, relataram os participantes.

Miguel Carvalho já tinha feito missões noutros contextos fora do país, mas nada o preparou para o que havia de enfrentar nas fronteiras com a Ucrânia. Desde o início da guerra, há três meses, juntou-se um grupo de amigos para realizar missão humanitária de apoio, tendo sido organizada uma viagem de autocarro para trazer refugiados referenciados por familiares para Portugal. A missão foi “um sucesso” e “muito gratificante”, pelo que continuou a ajudar em novas idas com envio de apoio humanitário, desde comida a roupa e medicação, para diferentes pontos.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“São três meses, mas já parece uma vida. São 24 horas sete dias por semana, não há folgas nem feriados”, conta. Foi ele que contactou o CHTS por considerar este apoio psicológico necessário. “Temos de perceber como lidar com o depois e se estamos aptos a continuar com estas missões humanitárias”, acredita. “Eu tive momentos em que tive dúvidas sobre como reagir comigo próprio e enfrentar certas situações. Eu já estive em missões humanitárias mais sangrentas, nestas não vi uma gota de sangue, no entanto estas foram as que me fizeram chorar mais vezes”, admite o voluntário.

Porquê? Talvez por haver menos defesas face a pessoas que são como nós. “Chegar à fronteira da Polónia, a uma estação de comboios, ver milhares de pessoas a sair com sacos plásticos na mão e crianças a pé ou ao colo a virem pedir que lhe levassem os filhos para poderem voltar para combater. Ver crianças que vinham sozinhas, pessoas desnorteadas e em estado de choque, com histórias iguais às nossas, empresários, professores, arquitectos… Há um sentimento de perplexidade e de impreparação perante alguém que perdeu tudo e veste as mesmas sapatilhas que nós e tem o mesmo telemóvel. O que nos diferencia é a língua. E as nossas defesas desaparecem, ficamos desarmados emocionalmente e surgem sentimentos difíceis de lidar”, relata Miguel Carvalho que, não esconde, juntamente com outros voluntários, teve de se “refugiar atrás de um autocarro para chorar”.

“É uma carga emocional muito pesada e há um grande sentimento de injustiça em relação a esta guerra”, refere.

Desde aí há noites em que custa a adormecer. A par disso, as pessoas a quem ajudam chegam agora com mais traumas e mesmo ferimentos. Ainda continua em missões, mas o cansaço começa a instalar-se.

“Muitas vezes, há a frustração de querer ajudar e não conseguir”

“Esta é uma iniciativa boa. O apoio psicológico é importante. Às vezes pensamos que não é preciso, que somos fortes, que conseguimos resolver sozinhos, mas é importante perceber que é preciso ajuda”, salienta Nataliya Khmil, presidente da Amizade – Associação de Imigrantes de Gondomar, que desde o início da guerra faz recolha de produtos alimentares, médicos e de higiene para enviar para a Ucrânia e apoiar os refugiados que chegam ao país.

Estas sessões deviam acontecer “mais que uma vez por mês” e chegar a mais pessoas, não só aos voluntários, acredita.

“Há que perceber que os voluntários também são pessoas, são humanos. Não somos profissionais. Estas sessões são muito importantes porque, muitas vezes, há a frustração de querer ajudar e não conseguir. Somos uma ONG. Temos de pedir para ajudar e nem sempre recebemos resposta positiva ou na hora”, sustenta Nataliya Khmil.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

A mesma opinião tem Maria José, da Associação AMA a Vida e Associação Nova Dimensão (AND). Esta ajuda é extremamente importante na preparação para a partida e na volta dos voluntários. É preciso ter conhecimento de como comportar-se, o que fazer, como gerir as emoções, conhecer a cultura que vão encontrar e, na volta, saber como gerir as emoções de tudo o que viram, porque muitas vezes é doloroso ver certas situações”, admite. Apesar de nestas instituições já haver esse apoio, é preciso generalizá-lo. “O que este grupo está a fazer é extremamente importante, ainda por cima sendo gratuito e podendo ser online. Vai ser extraordinário para as organizações, para os voluntários que queiram como também para as famílias de acolhimento”, acredita a responsável.

Também Maria José assume que há questões mais difíceis de digerir, como o “sentimento de impotência perante as situações, como as resolver, depois o partir e deixar as coisas a meio, ficar a pensar se as coisas vão correr bem”, a isso acresce a falta de meios para ajudar e o sentimento de que se deixaram as pessoas desprotegidas. “Estas pessoas passaram a ser nossas, passaram a ser família”, realça.

Com a situação da Ucrânia começam também a surgir as dificuldades nas famílias de acolhimento, desde logo pelo idioma e barreiras culturais, gerando-se dificuldades de adaptação. “Ficam no núcleo familiar, sozinhas e a lidar com famílias que vêm com muitos traumas e problemas. Os próprios refugiados vêm com problemas de depressão”, alerta Maria José.

“Lidar com o sofrimento dos refugiados é muito impactante e acabam por se sentir desgastados”

“Um voluntário tem de estar de coração aberto e não pode estar destroçado na sua vida pessoal. Vão encontrar pessoas destroçadas. Tem de haver empatia, mas não podem ficar desesperados”, foi um dos alertas deixados durante a sessão, a primeira deste projecto. Outro foi que o voluntário não se pode esquecer de si próprio, ou não conseguirá ajudar ninguém.

Este desgaste de dar apoio ao outro e confrontar-se com situações difíceis, pode levar ao choque emocional, depressão, ansiedade, pânico, raiva, medo, desespero, irritabilidade desesperança, culpa, sentimento de impotência, à incapacidade de sentir emoções e até a pesadelos, entre outros.

O Grupo de Ajuda Mútua quer ajudar a resolver problemas e na gestão do stress com estas sessões de partilha e de apoio emocional. Além disso, será avaliado o estado psicológico dos voluntários e podem ser realizadas sessões individuais para casos mais complexos.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Fomos contactados por um voluntário que teve consciência das dificuldades que estava a sentir. Andava em missões há quase três meses e foi tendo contacto com o sofrimento e sentindo o impacto deste trabalho. Foi um pedido de ajuda”, explica Márcia Mendes, directora do Serviço de Psicologia do CHTS.

Os profissionais desenvolveram um programa de intervenção alargado ao país inteiro e estabeleceram contacto com responsáveis de associações que vão levar a mensagem aos voluntários.

Márcia Mendes acredita que o principal problema será “a exaustão emocional” dos voluntários. “Lidar com o sofrimento dos refugiados é muito impactante e acabam por se sentir desgastados”, adianta. “Eu para ser um bom voluntário tenho de cuidar de mim primeiro. Tenho de ter cuidado com a minha saúde física e mental”, diz a médica.

Para já há seis psicólogos associados ao projecto que, em regime de voluntariado, darão este apoio, mensalmente, aos sábados de manhã. Esperam que este modelo possa ser seguido por outras instituições do país.

“A participação do CHTS num programa de apoio psicológico aos voluntários que acompanham os refugiados da Ucrânia deriva de um convite que nos formularam e que os nossos profissionais abraçaram de imediato, num gesto de colaboração, aproveitando o conhecimento técnico existente e indo ao encontro das necessidades que nos foram apresentadas”, realça o presidente do conselho de administração do CHTS, Carlos Alberto Silva, realçando que este centro hospitalar está “sempre disponível para trabalhar de perto com a comunidade, para garantir uma melhor saúde física e mental”.