Há males que vêm por bem. A expressão, tão conhecida do povo português, ganha mais sentido quando conhecemos histórias como a de Augusto Pinto Oliveira. Este paredense, agora com 42 anos, passou por anos de excessos e ficou dependente de álcool e drogas, até que um acidente o colocou em coma durante um mês. Teve que enfrentar duas cirurgias (uma lobotomia e uma cranioplastia), duas tromboses venosas profundas, a perda de mobilidade e um longo período de recuperação. As probabilidades médicas estavam contra ele. Os relatórios diziam que a possibilidade de recuperar a autonomia a 100% era praticamente nula.
Augusto fechou-se em casa, tornou-se sedentário e chegou aos 98 quilos. Não tinha objectivos nem perspectivas de vida. Até que reencontrou o prazer de correr. Hoje, quatro anos depois, corre ultra maratonas. Entre as muitas provas que já participou, com mais de 3000 quilómetros percorridos, destaca-se o Ultra Trail Du Mont Blanc, com 168 quilómetros, que completou no ano passado. Em 2016, quer participar numa prova com 310 quilómetros de distância.
A mensagem que deixa é simples: “Temos que acreditar em nós e nas nossas capacidades. Enquanto acreditarmos vamos conseguir”.
Se vive em Paredes o mais certo é já ter-se cruzado com Augusto Pinto Oliveira na rua. Ou pode mesmo ser ele que lhe entrega o correio em casa. O paredense é funcionário dos CTT há 23 anos.
Teve uma infância igual a muitos outros rapazes do concelho. Tentou ser jogador de futebol, mas a falta de jeito afastou-o da modalidade. Acabou por ingressar no atletismo do União de Paredes, onde ganhou algumas provas locais e chegou a vice-campeão nacional, por equipas. O gosto pelo desporto levou-o depois à prática da canoagem, por volta dos 16 anos. “Gostava mesmo daquilo. Costumávamos descer o Rio Sousa quando ainda estava limpo”, recorda. Foi vice-campeão nacional e representou a Selecção Portuguesa de Canoagem – Águas Bravas –
Slalom, na Taça do Mundo, no Campeonato do Mundo e em mais provas de nível internacional.
Até que, aos 18 anos, percebeu que não dava para viver da modalidade e quis alcançar a independência financeira. Foi nessa altura que ingressou nos CTT. O problema é que lhe faltava “a adrenalina das provas e das viagens”. O concelho era demasiado “parado” para ele. Ainda procurou refugiar-se na pintura, na escultura e na poesia e escreveu peças de teatro. Mas nada lhe dava o prazer que lhe tinha dado a alta competição. “Não arranjava nada que me completasse, sentia um vazio”, confessa Augusto Pinto Oliveira.
Esteve em coma durante um mês
Foi na busca para encontrar essa alegria e adrenalina perdidas que acabou por se refugiar no álcool e nas drogas, substâncias aditivas que acabaram por acompanhar grande parte da sua vida adulta. Passou a levar uma vida de boémia e marcada pelos excessos. “Ingressei num estilo de vida desorganizado e caótico. Nunca deixei de trabalhar, mas era dado aos excessos e noitadas”, explica o agora ultra maratonista.
Perdeu qualidade de vida, saúde e equilíbrio emocional. Procurava o prazer, mas o efeito provado pelo álcool e pelas drogas passava rápido e a dependência tornou o mundo ainda pior.
Quando nasceu a filha, por volta dos 31 anos de idade, abrandou, mas não largou completamente o estilo de vida que mantinha até então. Em pouco tempo, problemas de relacionamento levaram-no a separar-se da mãe da filha e, por consequência, a aproximar-se novamente dos vícios que nunca deixou.
A forma como vivia levou os amigos a antever-lhe um fim pouco animador. E o fim esteve muito próximo quando, numa noite, depois de demasiados excessos, caiu e bateu com a cabeça num passeio. O que aparentemente era um simples ferimento na cabeça complicou-se. Foi assistido no hospital e levou pontos, durante a madrugada, e foi para casa, já no sábado de manhã. “Entrei no quarto e não me lembro de mais nada”, conta o paredense. A mãe achou que estava a dormir durante todo o fim-de-semana, como acontecia com frequência, e só na segunda-feira de manhã, quando não compareceu ao trabalho, perceberam que algo estava errado.
Quando o encontraram estava inconsciente. Foi transportado de urgência para o serviço de Neurocirurgia do Hospital de São João, no Porto. Aí permaneceu um mês, em coma. Quando recuperou os sentidos tinha a mobilidade reduzida e sofria de episódios de delírio. Sofreu duas tromboses venosas profundas que lhe afectaram a perna e o braço esquerdos. Passou por duas cirurgias. Nem sabe ao certo quanto tempo esteve no hospital. No início, o prognóstico médico não era muito animador. Falavam na possibilidade de não sobreviver, em perda quase total de autonomia, na possibilidade de não conseguir voltar a trabalhar e muito menos praticar desportos.
Tornou-se sedentário e chegou a pesar 98 quilos
Foi melhorando. Fez fisioterapia e uma desintoxicação. “A desintoxicação física é a parte mais fácil, a psicológica é mais complexa”, garante.
Quando veio para casa tinha que se deslocar diariamente à fisioterapia, mas fora isso, foi-se tornando sedentário e começou a engordar. “Passava os dias no sofá a ver televisão. Cheguei aos 98 quilos. Não tinha vontade para nada, faltava-me motivação”, assume Augusto Pinto Oliveira.
Estava desanimado, fragilizado física e mentalmente, e não tinha objectivos. Até que a irmã, praticante de desporto, o incentivou a voltar a correr. Começou com um a dois quilómetros e muito cansaço, mas correr deu-lhe prazer. “A partir desse dia a minha vida recomeçou”, acredita. Nos dias seguintes correu primeiro dois quilómetros, depois cinco, depois 10… “Cada vez ia-me afastando mais de casa e não levava dinheiro nem telemóvel para me obrigar a regressar a correr ou a caminhar”, explica o atleta do Paredes Aventura.
Quando uns amigos foram participar no Ultra Trail Serra da Freita, com 70 quilómetros, resolveu inscrever-se na caminhada de 10 quilómetros. Terminou a pensar que teria conseguido participar no Trail curto. “Vi os atletas a chegar à meta, depois de muitas horas de prova, arranhados, sujos, a chorar, mas felizes. Também queria aquilo”, recorda o paredense.
No mês seguinte participou na primeira prova nocturna de Trail, com a distância de 25 quilómetros, em Óbidos. Não parou mais. “Foram estes os meus primeiros momentos no Trail e que alteraram a minha vida para sempre”, defende. Foi recuperando a forma física, até atingir o primeiro grande objectivo – conseguir fazer 42 quilómetros, uma maratona. Logo depois aumentou a fasquia até completar a primeira prova com mais de 100 quilómetros, na Serra da Estrela, e tornar-se um ultra maratonista. Estava a participar em corridas há apenas um ano.
Com cada vez mais mobilidade e “ideias alinhadas”, Augusto Pinto Oliveira procurou realizar outro sonho: ingressar no curso de Psicologia. Conseguiu entrar e passou a dividir o tempo entre os estudos, o trabalho (a que regressou depois de três anos de baixa), e as provas desportivas. Aos poucos começou também a reaproximar-se da filha.
Já percorreu mais de 3000 quilómetros em provas
Chegou ao pódio em algumas provas, individualmente e por equipas, mas os resultados continuam a ser a parte menos importante, garante. “O importante é chegar ao fim de cada prova, é superar-me, é dizer ‘eu acredito e eu consegui’”, refere o paredense. O desporto tem sido uma terapia.
Nos últimos quatro anos, já participou em mais de 40 maratonas e ultra maratonas, e em outras tantas provas abaixo dos 40 quilómetros. Já percorreu cerca de 3000 quilómetros em provas. Entre as mais emblemáticas está o Ultra Trail Du Mont Blanc, com a distância de 100 milhas (168 quilómetros), que completou no ano passado. Em 2016, quer participar na das 200 milhas, cerca de 310 quilómetros.
Só este ano, já fez duas provas acima dos 100 quilómetros e vai participar noutras duas, de 112 quilómetros, e numa outra de 60 quilómetros, entre muitas outras.
“O Ultra Trail foi o desporto que me devolveu a alegria, a felicidade, o meu bem-estar físico, emocional e psicológico, que me fez voltar a traçar metas, a definir objectivos”, sustenta Augusto.
Além disso, esta modalidade trouxe-lhe o gosto por outras actividades físicas e de aventura. Há três anos voltou à canoagem. Já participou no campeonato nacional e é campeão nacional na vertente de Patrulhas. Passou a fazer canyoning, caminhadas, btt… e já percorreu, por duas vezes, os Caminhos de Santiago.
“Se não fosse o acidente não tinha mudado a minha vida”
“Há quatro anos atrás não acreditava que a vida pudesse dar esta volta”, confessa o funcionário dos CTT. Augusto recorda que durante uma aula do curso de Psicologia uma professora perguntou o que mais tinha marcado a vida de cada um. “Os meus colegas respondiam o casamento, o nascimento dos filhos… momentos felizes. Eu disse: um acidente. Se não me tivesse acontecido o que aconteceu eu se calhar não estava aqui, não tinha visto a minha filha crescer nem tinha feito tantos quilómetros a correr”, diz. “Se não fosse o acidente não tinha mudado a minha vida”, acredita.
Agora com um novo estilo de vida, “saudável, activo e dinâmico”, sente-se com forças redobradas. E sabe que não quer voltar onde já esteve. “Nunca mais posso tocar em álcool e drogas”, salienta.
Para tudo isto é preciso “uma grande força de vontade”. “É preciso acreditar que podemos mudar a nossa forma de estar, pensar e agir”, afirma Augusto Pinto Oliveira. “Eu não desisti de viver, lutei para conseguir superar-me”, acrescenta.
Aos leitores, deixa uma mensagem simples: “Temos que acreditar em nós e nas nossas capacidades. Enquanto acreditarmos vamos conseguir. Nós conseguimos superar-nos sempre, por mais adversas que sejam as coisas. É preciso é encontrar uma motivação”.
Livro conta história de superação
Quando começou a ficar consciente, Augusto começou a escrever um livro em que conta a sua história.
“Nos meus textos e pinturas nota-se o sofrimento”, refere. Fala da sua vida de antes, da fase menos boa que atravessou e da nova vida ligada ao desporto.
Falta só escrever um final e conseguir uma editora para publicar a obra.
“O livro vai chamar-se ‘Dos cuidados intensivos à ultra maratona’”, adianta o autor, acreditando que a sua história possa ajudar outras pessoas.
É uma história de superação e vontade de viver.
Tirou o curso de Psicologia e faz voluntariado
Desde que iniciou o processo de recuperação, Augusto Pinto Oliveira já terminou a licenciatura em Psicologia e está a fazer um mestrado. A sua tese vai incidir sobre o tema “Superação, Resiliência e Emoções em ultra distâncias”.
“Correr uma ultra maratona é mais do que um esforço físico. É preciso muito trabalho psicológico”, refere, acreditando que a força psicológica ligada ao desporto pode ser transposta para o dia-a-dia. “Vejo que há pessoas que ao menor problema desistem ou refugiam-se enquanto outras continuam a lutar. Quem trabalha a componente psicológica consegue superar-se”, defende o atleta cujo mote tem sido chegar à meta, “custe o que custar, superando todas as dificuldades”.
Por outro lado, o paredense tem-se dedicado ao voluntariado em várias vertentes. Já esteve numa prisão, a ajudar reclusos; numa associação, a ajudar pessoas com problemas aditivos e já trabalhou com um grupo de ex-combatentes com traumas de guerra. “Gosto de trabalhar com grupos sociais marginais. Já fiz um trabalho com a comunidade cigana e com pirómanos e incendiários. Gosto da Psicologia de emergência e intervenção directa”, explica.
