O milagre da confissão

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Teve grande eco o relatório dos abusos sexuais na igreja francesa, de 1950 até hoje, sobretudo com crianças, apresentado em final de Setembro.

A Conferência Episcopal de França e a Conferência dos Religiosos e Religiosas de França pediram ao Vice-Presidente honorário do Conselho de Estado (Jean-Marc Sauvé) que promovesse uma investigação independente para conhecer os factos, compreender o que se passou e fazer sugestões para prevenir abusos futuros. Foi esta comissão, nomeada há dois anos, que entregou agora o seu relatório, disponível na Net.

Os dados recolhidos são

  • um questionário respondido pelas vítimas, cerca de 1500, a maioria já anteriormente referenciada, postas em contacto com a comissão através de associações de vítimas e de instituições ligadas à Igreja, e umas poucas mais que se apresentaram agora, convocadas por um apelo geral, divulgado a toda a população de França,
  • entrevistas a 69 vítimas
  • e uma sondagem feita através da internet a 28 mil indivíduos, escolhidos entre uma amostra de voluntários que participa habitualmente em sondagens a troco de bónus diversos.

A pergunta principal da sondagem era se a pessoa tinha sido vítima de abusos, incluindo neste conceito as provocações, o exibicionismo, os toques e as relações físicas. Cerca de 3300 dos inquiridos declararam-se vítimas de abusos sexuais quando eram menores de idade. O abusador tinha sido quase sempre um homem, 75% das vítimas eram raparigas e 25% eram rapazes.

No caso de o inquirido ter sido vítima, perguntava-se que tipo de pessoa tinha cometido o abuso. Do total das 3300 vítimas, cerca de 200 declararam que tinham sido molestadas por um membro do clero. A diferença mais notória em relação ao resto da sociedade é que 75% destas vítimas eram rapazes contra 25% de raparigas. Parece evidente o peso da homossexualidade neste tipo de pedofilia, apesar do relatório não tirar essa conclusão.

Várias outras particularidades emergem da sondagem, por exemplo relativamente à geografia dos abusos por parte do clero: os casos são mais raros nas zonas católicas e mais frequentes nas regiões descristianizadas de França. Outra diferença é que 21% das vítimas em ambientes eclesiais declararam ter apresentado queixa enquanto apenas 13% das outras vítimas o fez. Em ambos os casos, uma percentagem significativa das queixas não resultou em condenação, talvez por falta de provas.

Extrapolando os dados da sondagem para o total da população existente desde o ano de 1950, concluiu-se que 46 mil raparigas e 170 mil rapazes sofreram algum tipo de abuso sexual por parte de um padre quando eram menores. Analogamente, extrapolando os números da sondagem, conclui-se que cerca de 300 mil menores de idade foram sujeitos a algum abuso em ambientes relacionados com a Igreja, estimativa que é centenas de vezes superior ao número de queixas alguma vez apresentadas, directa ou indirectamente.

Ainda extrapolando a mesma sondagem, vários milhões de menores de idade teriam sidos abusados em França ao longo deste mesmo período de tempo, em ambientes exteriores à Igreja.

Como é costume, só a Igreja se preocupou com o assunto, tanto mais que o estudo tinha partido de uma iniciativa dos bispos e superiores das ordens religiosas. O Papa Francisco falou em «vergonha» pela incapacidade para lidar com os abusos.

Perante a ameaça de serem ultrapassados pela efervescência mediática, os políticos franceses saltaram para a ribalta, certamente sem pensarem muito, insistindo na proposta do relatório de acabar com o segredo da confissão. Os bispos rejeitaram liminarmente a hipótese e o próprio ritmo da agitação mediática remeteu ao esquecimento aquela ideia absurda.

De qualquer maneira, o assunto convida-nos a reparar numa realidade histórica mais impressionante que a pedofilia e a homossexualidade. Decorridos tantos séculos, tantos milhões de padres, de sacramentos e de pecados, o segredo da confissão resiste a tudo.

Por exemplo, no longínquo ano de 1383, o Rei Venceslau multiplicou inutilmente as tropelias na tentativa de arrancar ao Padre João Nepumoceno os segredos ouvidos na confissão. Finalmente, para fazer desaparecer o cadáver, atirou-o ao rio Moldau, em Praga. No dia seguinte, o cadáver flutuava no rio brilhando com uma luz misteriosa. Ainda hoje, uma cruz situada entre o 6º e o 7º pilar da ponte recorda o local de onde João Nepomuceno foi atirado ao rio e o seu cadáver, recolhido pelo povo, venera-se com grande esplendor. A Igreja canonizou-o e celebra a sua festa a 20 de Março.

Houve tudo. Mártires, políticos apressados, as propostas mais delirantes. No entanto, o segredo inviolável da confissão continua a brilhar através dos séculos com uma firmeza difícil de explicar. A não ser que admitamos que é o próprio Deus que está empenhado em que este milagre perdure pelos tempos sem fim.