Enfermeira de Rebordosa cuida de doentes graves Covid em Inglaterra

Mafalda Cunha emigrou por falta de alternativa. Não pensa, para já, regressar ao país. Conta que no último ano já viu morrer mais gente do que em todos os anos de carreira

0

Há mais de cinco anos que Mafalda Cunha, enfermeira natural de Rebordosa, Paredes, rumou a Inglaterra, deixando para trás um país onde não teve oportunidade de exercer a profissão para a qual se formou. Encontrou lá um sítio onde o trabalho era valorizado, mais bem remunerado e onde há espaço para progressão de carreira. “O meu país nunca me deu uma oportunidade por falta de experiência”, lamenta.  A enfermeira de 28 anos não pensa, para já, regressar.

Actualmente, trabalha com casos graves de doentes Covid-19 nos cuidados intensivos de um hospital do Sul de Inglaterra. Confessa que, no último ano, já assistiu a mais mortes do que em toda a carreira. Uma das situações que mais a marcou foi a de uma senhora de 80 anos a quem deu a mão enquanto falecia.

Doença do pai levou-a a querer ajudar os outros

Cresceu em Rebordosa, num núcleo familiar pequeno, composto pelos pais e pelos dois irmãos (um irmão e uma irmã). E ainda muito nova viu a vida mudar para sempre com a morte do pai.

“O meu pai foi diagnosticado com esclerose múltipla desde cedo e ficou reformado por invalidez. Faleceu em 2006, ainda eu tinha 12 anos. Até la, a nossa dinâmica de família sempre foi ajudar uns aos outros”, conta Mafalda Cunha. A mãe era estofadora de sofás numa fábrica. E sempre que não podia ir com o pai às consultas a tarefa era assumida pelos irmãos mais velhos, primeiro, e depois também por ela. “Desde cedo que comecei a andar em ambulâncias e a ir para o hospital com regularidade”, comenta.

Aluna na EB 2,3 de Rebordosa e, mais tarde, da Escola Secundaria de Vilela, confessa que “estudava para os mínimos”, e que “sempre disse que nunca iria para enfermagem”. Mas o que aconteceu com o pai levou-a a ingressar na corporação dos Bombeiros Voluntários de Rebordosa e acabaria por tomar essa opção. “Quando o meu pai faleceu fui eu que o encontrei morto. Na altura, senti uma impotência enorme de não poder fazer nada. A minha primeira reacção foi chamar a minha irmã para me ajudar. De certa forma, isso contribuiu para que eu entrasse para os bombeiros e mais tarde para a carreira que escolhi. Eu não queria que isso volta se a acontecer”, explica a jovem.

Licenciou-se na Escola Superior de Saúde de Viseu. Todos os fins-de-semana regressava a casa e fazia voluntariado nos Bombeiros. Quatro anos depois, terminado o curso, não conseguia encontrar emprego. “Nos primeiros três meses ainda integrei a Equipa de Combate a Incêndios dos Bombeiros, durante a época florestal, mas sempre a mandar currículos. Só que pediam sempre experiência, e como eu não a tinha, nunca conseguia o emprego”, lamenta a paredense.

Foi então que uma colega a “impulsionou” a ir trabalhar em Inglaterra.

“Muitas vezes recorri ao tradutor e a colegas de trabalho para me ajudarem a entender o que os doentes me queriam dizer”

Tinham-se passado seis meses desde que acabou o curso e recebeu mais uma “nega” numa das vagas a que se tinha candidatado. Uma amiga da faculdade ia para fora e desafiou-a. “O processo não é fácil. Existe todo um investimento monetário em traduções e papéis que são obrigatórios, assim como pedir permissão à Ordem Inglesa, a Nursing and Midwifery Council – NMC, para poder exercer aqui, fazer uma entrevista em inglês, entre outras coisas” resume.

Foi recrutada para trabalhar no Southampton General Hospital, no Sul de Inglaterra. Começou a trabalhar em Outubro de 2015, inicialmente no serviço de cirurgia direccionado a Urologia e ao Sistema Hepatobiliar e, mais tarde, em 2018, mudou-se para a Unidade de Cuidados Intensivos Gerais do mesmo hospital.

A natural de Rebordosa não esconde que houve um período de adaptação “um pouco difícil”, com muita nova informação e uma língua diferente. “Muitas vezes recorri ao tradutor e a colegas de trabalho para me ajudarem a entender o que os doentes me queriam dizer. No entanto, eles receberam-nos muito bem. Quando alguém vem existe um período de adaptação onde temos palestras acerca de como as coisas funcionam e para conhecer as instalações”, refere. Acima de tudo sentiu-se valorizada e que era uma mais-valia para aquela população.

“Tanto a nível profissional como pessoal cresci muito com esta mudança na minha vida e aprendi imenso. Ainda aprendo imenso todos os dias. Existem sempre desafios e nunca me foram negados cursos ou investimento na minha carreira e a nível educacional. Ao contrário de Portugal a progressão de carreira é facilitada desde que as pessoas tenham os cursos e as competências necessárias para o emprego”, salienta Mafalda Cunha.

Apesar de nunca ter trabalhado em Portugal, a jovem sente, através das conversas com colegas, que a profissão não é tão reconhecida cá, desde a questão horária à monetária e à progressão de carreira. “Sinceramente, assusta-me a possibilidade de algum dia ter de trabalhar em Portugal na minha área, porque as formas e procedimentos são completamente diferentes dos que estou habituada, já para não falar que a língua técnica seria um desafio neste momento”, confessa.

Pandemia trouxe caos, incerteza e “pânico geral entre os profissionais de saúde

Da profissão escolhida não se arrepende. “Ser enfermeira, para mim, é poder ajudar o próximo e, acima de tudo, lutar ao máximo para manter a pessoa com vida. Costumo dizer que ‘não sei lidar com a morte e prefiro dar o litro para manter a pessoa viva do que ela morrer nos meus braços’”, assume a paredense. Além de cuidar das necessidades básicas, é preciso “uma palavra de carinho e esperança numa fase de enfermidade e desespero” e assustadora na vida daquela pessoa. “O papel do enfermeiro vai muito além de preparar medicação. Com o passar dos anos, chego mesmo a atrever-me a dizer que até Psicologia fazemos. Quando me licenciei, apesar de ter feito alguns estágios práticos, não tinha bem a noção desta realidade. Pode ser uma carreira bastante desgastante a nível emocional e físico”, testemunha Mafalda.

Com a chegada da pandemia houve muita coisa a mudar e a ser ajustada. Houve caos, incerteza e “pânico geral entre os profissionais de saúde”, reconhece a enfermeira de Rebordosa. “Ao nível do serviço tiveram de ser feitos vários reajustes e o meu hospital aumentou a unidade de intensivos para uma nova ala. Tudo isto causou pânico, incerteza, dúvida e aflição. As pessoas começaram a trabalhar completamente stressadas e desorientadas”, sendo que a par disso houve profissionais realocados, deixando o serviço desfalcado e sobrecarregado.

Desde Março que trabalha com doentes Covid-19 “em estado grave”. Nunca esteve infectada, já que na unidade onde está nunca faltou a protecção necessária. Eram testados primeiro uma vez por semana, para despiste, com zaragatoa, e agora são duas vezes por semana, com testes rápidos. Já tomou a primeira dose da vacina e tem esperança que a situação vá mudando. “Espero que toda esta situação termine depressa. Os profissionais de saúde estão a ficar esgotados psicologicamente e fisicamente. Tem sido um desafio para muitas pessoas e acredito mesmo que, depois desta vaga, teremos muitas repercussões na saúde a nível de burnout”, acredita a jovem.

Esta segunda vaga, afirma Mafalda, tem sido mais difícil. “Este último ano já presenciei mais mortes do que em toda a minha carreira de enfermagem”, garante, dizendo que os doentes são agora também em faixas etárias mais baixas, entre os 30 e os 60 anos. “Os casos que mais me marcam são quando temos pessoas jovens e precisam de ECMO. Infelizmente, o nosso hospital não está equipado para essa finalidade e Londres está completamente cheia de momento. Há difíceis decisões de prioridades de cuidados. Estamos a chegar a um estado que não conseguimos salvar toda a gente e isso mexe muito com o psicológico. Serão sempre o familiar de alguém. ‘E se fosse um dos nossos?’, perguntasse.

A situação que mais a marcou foi a morte de uma mulher de 80 anos. “Disse-me que estava muito agradecida por tudo que estávamos a fazer por ela e que ela sabia que estava a morrer. De mãos dadas comigo, faleceu”, relata.

Contratos de quatro meses e instabilidade não a fazem ponderar voltar

Mafalda Cunha também não se arrepende de ter escolhido trabalhar fora. “Aprendi muito e cresci muito a nível pessoal e profissional desde que aqui estou”, atesta.

Questionada sobre se já considerou voltar, sobretudo numa altura em que o país procura recrutar enfermeiros, não esconde que até já tentou, mas que com as condições actuais isso não está em cima da mesa. “O facto de não ter disponibilidade imediata exclui -me automaticamente dos concursos e não aceitam entrevistas por vídeo-chamada”, dá como exemplo de dificuldades. “Na altura em que estava a tomar essa decisão estava emocionalmente debilitada, mas após conversas com família e amigos cheguei à conclusão que não seria a melhor atitude a tomar já que agora Portugal está apenas a contratar profissionais de saúde para contratos de quatro meses e eu iria trocar um emprego estável e bem remunerado por um emprego incerto sem perspectivas de renovação e até eventualmente despedimento quando toda esta situação terminar”, considera a enfermeira. Isto numa fase em que tem perspectivas de evolução de carreira onde está.

Não esconde que está sujeita a uma grande carga “psicológica, emocional e física” e que já está “esgotada” de ouvir falar de pandemia. Mafalda tem também medo pela família que vai acompanhando à distância, incluindo o caso da irmã grávida e infectada com Covid. “Desde Março já tive duas mortes na família (não Covid) e destruiu-me por completo não poder estar com a minha família. Foram períodos muito difíceis. Falo com a minha mãe todos os dias por Skype nem que seja só cinco minutos para saber que está tudo bem ou então com os meus irmãos. Dou grande valor ao facto de sermos uma família muito unida e isso ajuda-me imenso e dá-me força para continuar”, conta a paredense.

Desde Outubro que não vem a Portugal e não sabe quando o poderá fazer.