Ludovina, Maria e Ana moram todas em Parada de Todeia, Paredes. Todas têm saberes diferentes. E é para ajudar a preservar esses saberes e para que não sejam esquecidos que estão a colaborar com o projecto de recolha de Cancioneiro que está a ser realizado em Paredes, cantando cantigas de outros tempos, desfiando lengalengas, elencando mezinhas e descrevendo jogos tradicionais.

A meta do projecto iniciado por Tiago Magalhães, professor de música, e inserido no “Culturinha Sai à Rua”, da Câmara de Paredes, é que este património não se perca. As canções são transformadas em partitura e este material divulgado nas redes sociais e site do município para que possa ser usado por todos, sobretudo pelos mais jovens. Há a ideia de reunir esta recolha em livro.

“Eu escrevi-as para não me esquecer, mas não sei onde pus o caderno”

Tem 91 anos e quando lhe perguntamos o nome dá-nos dois: Ludovina Fonseca (no cartório) Maria Isabel (por baptismo). “A minha vida dava uma história”, brinca, sorrindo como uma jovem, apesar do cabelo branco e rosto marcado pela passagem do tempo.

Nasceu na Régua, mas foi em Parada de Todeia, onde tinha raízes familiares do lado paterno, que viveu praticamente a vida toda. Uma vida que lhe trouxe 13 filhos (são agora 10), 24 netos e 14 bisnetos.

Sentada num pátio exterior da casa, Ludovina conta que fez a quarta classe, mas que gostava de ter estudado mais. “Gosto de ler, escrever e fazer contas”, explica. De passear nem se fala. Enquanto a vida lhe permitiu – o que só foi interrompido pela pandemia – passeou o país e foi a França e Espanha várias vezes. Só quer que isto passe para poder voltar a viajar.

Quando jovem aprendeu costura, bordado e fazer meias. Mas desde os 19 anos, altura em que casou, dedicou-se a olhar pelos campos e pelos filhos.

Outro gosto que sempre a acompanhou foi o da música. “A minha mãe cantava o fado e apanhei-lhe o gosto. A minha avó também cantava bem. Antes eu  andava sempre a cantar. No campo, a lavar, a varrer… fazia-se o serviço bem disposto. Agora não tenho voz”, lamenta.

Mas quando Tiago Magalhães a desafiou a cantas as cantigas de antigamente não disse que não. “Eu escrevi-as para não me esquecer, mas não sei onde pus o caderno”, confessa Ludovina já de microfone à frente, para fazer um registo. “Acho importantíssimo para que isto não se perca”, assegura a sénior.

Vai buscar um caderno com provérbios. Esse não o perdeu. “Respeita a velhice, é depositária da experiência”, lê. O que encaixa que nem uma luva no projecto de Cancioneiro.

Canta, sem medo de desafinar, um fado dedicado à mãe, que a própria mão costumava entoar: “És para mim a mais bonita, apesar de enrugado esse teu rosto, serás até morrer mãe infinita, aquela e sempre aquela que mais gosto”.

Depois outra, alusiva aos marcos de correio, uma novidade na altura em que a cantiga surgiu. “Minha rua sossegada tem à beira do passeio, a coisa mais engraçada que é o marco do correio (…)”.

A conversa e a cantoria podiam ter durado o dia inteiro. “Tenho todo o vagar do mundo”, garante, contando histórias de tempos em que se brincava na rua, ao arco, à macaca, ao pino…

“Íamos a pé, muitas vezes descalços e cheios de frio a cantar pelas estradas”

De microfone ligado Tiago Magalhães regista tudo isto. Depois transforma o que ouve em melodias e partituras. E regista as lengalengas, jogos tradicionais e mezinhas.

Tiago arrepende-se de não ter feito isto com os versos e as histórias que a avó costumava contar. Agora é ele, professor de música, que tem ido fazer a recolha com outras avós que não a sua. Começou com a mãe, em Outubro passado, em confinamento.

Ana Rita Marques tem 74 anos. E na memória guarda as idas para a escola, em Astromil, onde morava. “Íamos a pé, muitas vezes descalços e cheios de frio a cantar pelas estradas”, relata. Na costura, arte que abraçou depois, era igual. O mesmo acontecia nas desfolhadas, nas espadeladas. “Antes fazia-se tudo a cantar”, atesta.

“Olha o gaio, olha o gaio, dai-lhe um tiro e matai-o, olha o gaio, riu piu piu”, canta como exemplo de música que guarda desde os 12 anos.

Quando o filho a desafiou “a cantar as cantigas antigas”, foi puxando pela memória. “O meu amor é chofer, oh rosa, ti po toca na buzina, oh rosa, oh linda rosa, oh rosa, oh linda menina”, entoa. Muitas das canções, histórias e lengalengas aprendeu-as com a “Ti Regata”, assim chamavam a uma idosa que vivia perto de sua casa.

“Gosto muito de cantar, ainda faço parte do grupo coral”, salienta Ana Rita. Do filho, tem orgulho, não podia ser de outra forma. “Fico contente de o meu filho andar a fazer isto”, afirma.

“As pessoas mais antigas que sabiam disto era de memória e foram morrendo”

Há 40 anos que Maria José Ribeiro, costureira, começou a aprender a arte do talhar, uma cura em que acredita. “Aquilo que precisei de talhar aprendi e faço para mim e para os outros”, testemunha a mulher de 66 anos. “Os antigos faziam isto e nós aprendemos igual. A minha filha passou a acreditar quando talhei a febre aftosa ao meu neto”, dá como exemplo.

Para não perder nada, ela própria faz um registo. Tem folhas soltas, guardadas numa mica, com os vários dizeres necessários para talhar inúmeras maleitas, desde o talhar da dada, das más, do unheiro ou do tesorelho.

Quase todas as mezinhas implicam dizeres normalmente repetidos nove vezes e em três dias. O final é comum a quase todos: “em louvor de S. Silvestre, o que eu faço tudo preste. Nosso Senhor Jesus Cristo seja o verdadeiro mestre”.

“Guardo tudo numa capa para a minha filha saber quando precisar. Ficando registado qualquer pessoa pode fazer”, atesta, falando da importância de “registar para que não se perca”.

“As pessoas mais antigas que sabiam disto era de memória e foram morrendo”, lamenta.

“Dizem que têm vergonha, mas estão sempre dispostas e com alegria e alguma vaidade até”

Desde Outubro Tiago Magalhães, apesar das limitações da pandemia, já foi a várias casas e reuniu um espólio de cantigas que foram transformadas em 30 partituras. “A maioria das melodias tem menos de um minuto, típico das canções tradicionais que depois repetem”, explica.

Quando vai ao encontro das pessoas elas dizem logo que sim a partilhar estes conhecimentos. “Dizem que têm vergonha, mas estão sempre dispostas e com alegria e alguma vaidade até”, conta o professor de música.

Grava o áudio, mas também vídeo que vai sendo partilhado no site e redes sociais do município. A transcrição para partituras visa levar estas canções aos mais novos e “perpetuar este património”.

Garante que tem encontrado “muitas canções genuínas”. “Há quem cante a mesma canção e outros cantam a mesma letra com melodia diferente”, dá como exemplo. “A grande dificuldade deste trabalho é as pessoas irem falecendo”, alerta, apelando ao contributo de filhos, netos e sobrinhos: “Gravem e enviem os vídeos”.

“O projecto Culturinha Sai à Rua nasceu para aproximar os munícipes da cultura, bem sabendo que, pelos mais diversos motivos e, ainda para mais, em tempo de pandemia, nem todos têm acesso. Assim, ao envolver-se toda a comunidade, das diferentes freguesias do concelho, temos uma programação cultural mais diversificada, inclusiva, retirando-a das infra-estruturas culturais municipais habituais”, refere a vereadora da Cultura da Câmara de Paredes.

Esta ligação aos seniores é importante até pelo combate ao isolamento. “Sentiu-se que os idosos, mais isolados, têm um conhecimento, que não pode ficar perdido no tempo deles, surgindo o Cancioneiro para recolha, por exemplo, de canções, saberes, lengalengas. É um trabalho que tem sido muito entusiasmante para os idosos, que partilham o que sabem, e para todos os envolvidos no projecto”, assegura Beatriz Meireles.

O trabalho feito está a ser divulgado na Magazine Cultura em Casa e disponibilizado no site e nas redes sociais do município, consistindo num um repositório, de acesso livre, que vai sendo criado para consulta de qualquer pessoa.

“Futuramente, ponderamos a criação de um Cancioneiro, em formato livro. A autarquia tem apoiado o trabalho de recolha das músicas, que integrarão o Cancioneiro”, conclui.

Quem quiser contribuir com saberes pode enviar para cultura@nullcm-paredes.pt ou agendar uma recolha. Os contributos podem ser, preferencialmente, em formato vídeo, mas também áudio ou texto.