João Paulo II, a plenos pulmões

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Há histórias que só se compreendem com um registo filmado. Uma delas, é a fúria portentosa de um Papa a gritar a plenos pulmões. Não consigo imaginar como foi a entrada de Jesus no templo de Jerusalém, com um chicote na mão, a derrubar as mesas, a chicotear as pessoas, a lembrar-lhes, aos gritos, o respeito devido a Deus. A versão pacífica de um chicote a estalar no ar, sem tocar nos vendilhões, ou uma retórica de tribuno, não correspondem à realidade, mas gostava de ter um vídeo para perceber exactamente o que aconteceu. (O Evangelho da Eucaristia desta passada sexta-feira, dia 1 de Junho, contava por palavras o episódio).

Seja como for, assisti a três ocasiões em que João Paulo II gritou com toda a força e garanto que não é para brincadeiras. Assisti duas vezes pela televisão e uma vez ao vivo.

A primeira vez aconteceu em Março de 1983 na visita à Nicarágua, quando os sandinistas tentaram abafar o discurso do Papa. Para contrariar as palavras de ordem sandinistas, a multidão aplaudia e gritava vivas ao Papa e, sobre toda esta barulheira, com gestos e com gritos ainda mais fortes, o Papa comunicava com o povo. Embora controlasse a instalação sonora, o grupo afecto ao Governo não conseguiu dominar o evento e ficou claro de que lado estava o povo. O Papa não conseguiu ler o que tinha escrito, mas, para quem assistiu na televisão àquela confusão ensurdecedora, pareceu inegável que a mensagem de João Paulo II «passou». A capacidade gestual de João Paulo II, as palavras que gritou e a sintonia da multidão romperam o bloqueio montado pelo Governo e pelos seus apoiantes.

A terceira vez que senti o vigor do Papa João Paulo II foi em Janeiro de 1994, ao vivo. Foram longos minutos, talvez dez minutos, intermináveis e inesquecíveis. Todos os presentes estavam gelados, sustendo a respiração. Mas essa história fica para outro momento.

A segunda vez que ouvi João Paulo II gritar, faz agora 25 anos, foi em Maio de 1993. Como estava em Itália, pude acompanhar a transmissão da visita à Sicília, de 8 a 10 de Maio de 1993. No final da Eucaristia do dia 9, no Vale dos Templos, João Paulo II prosseguiu, sem papel (www.youtube.com/watch?v=m_IxA4iqwaA), dirigindo-se aos responsáveis da Máfia:

– «…Que carregam sobre a sua consciência tantas vítimas humanas… têm de compreender que não é permitido matar… [ainda por cima] inocentes. Deus disse, um dia, “não matarás!”. Um homem, quem quer que ele seja, qualquer grupo que seja, como a Máfia, não pode mudar e espezinhar este direito santíssimo de Deus. Este povo siciliano (…) não pode viver sempre sob a pressão de uma civilização contrária, de uma civilização da morte. É preciso [instaurar] aqui a civilização da vida. Em nome deste Cristo, crucificado e ressuscitado, deste Cristo que é Vida – caminho, verdade e vida –, digo aos responsáveis: Convertei-vos! Um dia, hás-de ver o Juízo de Deus!».

Estes minutos foram surpreendentes pela clareza, pela voz e pelos gestos, mas eu guardo uma impressão ainda mais forte do que aconteceu mais tarde, à varanda do paço episcopal, diante da multidão reunida na pequena praça. Como esta ida à varanda não foi uma cerimónia organizada, a televisão transmitiu na altura, mas hoje não é fácil encontrar essa reportagem na Net. As palavras foram de uma dureza ainda mais impressionante, a ameaça do Inferno foi mais explícita e os gritos, a plenos pulmões, vibravam ainda com mais força. Tal como na Missa, o Papa levava o báculo com o crucifixo mas, para ficar com as mãos e os braços livres, encostou-o ao ombro. Assim, com o máximo de força, com a palavra e com o gesto, o Papa condenou, ameaçou severamente, terminando a pedir, por favor, que se arrependessem.

A visita teve um impacto enorme em Itália. Em resposta, explodiram duas bombas de grande potência em Roma (junto da basílica de São João de Latrão e da igreja de san Giorgio al Velabro) e o Padre Pino Puglisi foi assassinado. Bento XVI mandou beatificá-lo, numa cerimónia que decorreu já no pontificado do Papa Francisco.

Em mais ocasiões, João Paulo II afirmou substancialmente o mesmo que em 1993, mas sem levantar a voz. Bento XVI fez-lhe eco, no seu estilo próprio, por exemplo, numa visita à Sicília em 2010, recordando a memória do Pe. Puglisi e de outros:

– «Não cedais às sugestões da Máfia, que é uma estrada de morte, incompatível com o Evangelho, como os vossos bispos vos têm ensinado tantas vezes, e continuam agora. (…) Caros jovens, não tenhais medo! Não tenhais medo de vos opordes ao mal».

Francisco repetiu várias vezes, mas sem gritar, as palavras de João Paulo II (por exemplo em www.youtube.com/watch?v=CtDM0aAhZLw e www.youtube.com/watch?v=_gPSRVsZLyA), anunciou que ia em Setembro à Sicília e enviou há dias uma carta aos bispos sicilianos reunidos em Agrigento para renovar solenemente o anátema de João Paulo II, em 1993, contra os homens da Máfia – esse sim! – gritado, fez agora 25 anos, a plenos pulmões.