Foto: Márcia Pimparel Vara/Verdadeiro Olhar

As pernas já não colaboram, mas a vontade de trabalhar e de perpetuar um grupo que ajudou a formar é tanta que Rosa Moreira Carneiro contraria a vida e a saúde e mantém a dedicação ao Grupo Cultural e Artesanal as Lavradeiras, de Lordelo, em Paredes.

Quando fala desta coletividade, que ajudou a formar, quase não consegue esconder as lágrimas, porque é a sua vida, diz Rosa Carneiro, que, durante a conversa aproveita para se sentar, porque as pernas não têm mesmo a vitalidade de outrora. 

E eis que começa a desenrolar as vida de outros tempos, daqueles em que as meninas pequenas trabalhavam, “bem diferentes de hoje”.

“Era pequenina e já trabalhava nos campos”, recordou ao VERDADEIRO OLHAR, com as saudades espelhadas no olhar. Tinha sete anos e, naquela época, era natural ver as crianças a trabalharem no campo e em casa. “Faziam tudo, tomavam conta dos irmãos mais novos, cozinhavam e, depois, voltavam para o campo”. Rosa não era exceção, nunca foi, porque, desde que se lembra, sempre trabalhou.  

Frequentou a escola, mas o seu dia começava bem mais cedo do que as aulas, às 6h00. E só quando tivesse o trabalho concluído é que pegava nos livros. “A minha mãe dava-me um bocado de pão e uma laranja para o lanche”.

Rosa Carneiro tem 80 anos e se o corpo a denuncia, o mesmo não se pode dizer das memórias que conseguimos vislumbrar, através de palavras que se atropelam tal é a ânsia de nos contar tudo.

A menina cresceu, deu catequese e gostava, mas preferia a eira. E foi ali que, “com outras duas, começámos a ensaiar”. Terá sido, nessa altura, que terá surgido o esquiço do grupo que mais tarde se veio a formar.

“Havia lá uma senhora de idade que tinha um campo de linho. Fomos ter com ela e pedimos para se juntar a nós. Ela foi presidente”, lembrou.

Ainda tenho os livros de atas e das contas, escrevia e guardava tudo”

Rosa Carneiro trouxe à conversa o facto de ter comprado tudo. Era secretária da coletividade, mas tratou de pôr o grupo a funcionar. “Vesti mais de 40 elementos”. A meio atira que, ainda hoje, tem “os livros de atas e das contas, escrevia e guardava tudo”, disse.

Depois de vestidos e calçados, “o senhor Fraga deu-meu 100 contos para comprar os socos”, também “nos ofereceram um forno para cozermos o pão”.

Mais tarde, a presidente adoeceu e pediram-lhe para dirigir ‘As Lavradeiras’. E foi o que fez, mas antes viajou até à Alemanha “para ver uma neta a nascer”. Tem seis filhos, 11 netos e sete bisnetos.

E é aqui que podemos evocar uma cultura de transformação do linho, que começou no Egito e que por cá é uma atividade ancestral e fundamental na história do trabalho têxtil em várias regiões do país, tal como era no Vale do Sousa.

Esta matéria prima fez criar rotinas de fiação e de tecelagem para consumos domésticos e de mercado.

E a verdade é que esta é uma atividade quase desaparecida, mas o grupo luta para que esta prática não caia no esquecimento.

O processo de transformação do linho é complexo. É plantado em março ou abril, em zonas húmidas, e está pronto a colher no princípio do mês de julho. Na colheita, é arrancado inteiro, a chamada arrancada, e depois de lavado é ripado, um processo que onde o linho é passado pelos ripeiros para retirar as sementes e as folhas, sobrando apenas o caule de onde será produzida a fibra.  E cantam-se músicas, para que todo este processo não seja tão cansativo.

Depois de ripado, fazem-se molhos que são levados para o tanque, rio ou levada, onde ficarão submersos, a curtimentar durante nove dias. Durante este processo, as camadas exteriores do caule apodrecem, tornando possível retirar a fibra do seu interior. No final, os molhos são retirados de água e levados para secar para um monte, ou campo mais nove dias. Quando seco, é levado para a eira e malhado para quebrar a parte exterior rígida do caule. A linhaça é aproveitada para semear o próximo linhal.

De seguida, é levado para ser moído, quebrando ainda mais a parte lenhosa e tornando-a mais fácil de separar da fibra. Depois bate-se no linho para libertá-lo do caule.
Para o refinar ainda mais é passado pelo sedeiro, um pente de dentes de aço finos, que elimina os últimos vestígios de caule e separa as fibras em comprimentos distintos. E chegou a hora de pegar no fuso e fiar o linho, transformando-o em fio. Depois, é dobado na dobadoira e lavado antes de estar finalmente pronto para ser tecido no tear.

Na memória coletiva ele paira, associado à tradicional família portuguesa, às virtudes das mães e dos lares. Tudo era alvo e puro e respirava-se o perfume da modesta flor azul, espelhando a frescura dos ribeiros e dos lameiros. É o saudosismo que enfraquece o presente, porque é impossível lembrar a roca e o fuso sem sentir comoção.

“Fiquei viúva há 14 anos, mas também não quero mais nenhum marido”

Rosa Carneiro nasceu em Sobrado, Valongo, mas o amor levou-a a Lordelo, em Paredes, de onde era o marido e por ali assentou. Ficou viúva há 14 anos, “quando estava quase a fazer 50 de casada, mas também não quero mais nenhum marido”, diz com a convicção de que um outro casamento não lhe iria garantir a felicidade de outros tempos.

Hoje não procura o amor, só deseja “poder andar com as minhas pernas que estão fraquinhas”. Ainda assim, gere a sua vida e faz a comida, “isso ainda consigo, o resto é que não”, o que “é pena, porque eu era muito trabalhadeira, mas agora não posso”, lamenta.

Recebeu, recentemente, pelas mãos do presidente da Câmara Municipal de Paredes, a medalha de ouro do município que homenageou várias coletividades do município, entre elas 12 ranchos. Em representação do grupo de que tanto se orgulha e ajudou a formar, Rosa subiu ao pódio.

Adorou a cerimónia, mas o dia também lhe trouxe alguma tristeza, porque recordar tempos felizes também magoa. “Olhe fico tão emocionada ao lembrar-me que prefiro nem falar”. Mas vai falando e dizendo que ensinou a sua arte a muitas crianças. E a ânsia de manter viva esta tradição é tanta que diz estar disposta a repetir o feito. “Se as crianças quiserem podem vir a minha casa, ensino tudo e elas aprendem num instante”.

“Os mais novos não querem aprender e os pais também não ajudam. É uma pena, porque as tradições vão acabar por desaparecer e são tão bonitas”,

Apesar desta disponibilidade, Rosa Carneiro sabe que agora é tudo tão diferente de quando era miúda e corria pela eira. “Os mais novos não querem aprender e os pais também não ajudam. É uma pena, porque as tradições vão acabar por desaparecer e são tão bonitas”, vaticinou ao VERDADEIRO OLHAR, ao mesmo tempo que atalha com outra memória: “lembro-me que corríamos tudo, viajamos por Portugal inteiro, desde Lordelo até ao Seixal, São Pedro do Sul, Braga, Guimarães. Tantos sítios que nem me lembro”, porque “todos os domingos o grupo saía e fazíamos tudo em palco, tínhamos muitas crianças e cantávamos”.

Hoje, resistem apenas oito elementos, mas Rosa aguarda o dia em que as filhas e os netos regressem a Portugal e, talvez aí, consigam continuar um trabalho que começou quando era nova e as pernas tudo lhe permitiam.

Rosa Carneiro não quer morrer “com medo que, nesse dia, o grupo desapareça” com ela, disse ao VERDADEIRO OLHAR tentando evitar as lágrimas. Se pudesse pedir um desejo, queria apenas que “continuasse de pé” e, quem sabe, com a energia de um passado que para Rosa Carneiro parece estar mesmo ali, ao virar da esquina da sua memória.