Paredes: Mulher de Gandra chegou aos 101 anos com “boa memória”

Trabalhou quase toda a vida na lavoura e conserva três filhas que cuidam dela diariamente. Número de centenários tem crescido na região

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É provável que muitos, mais novos, tenham inveja da boa memória que Maria Rosa das Neves, de 101 anos, ainda preserva. “Não me esqueço de nada. Tive sempre memória boa e lembro-me de coisas muito antigas”, garante.

Nascida e criada em Vilarinho de Baixo, em Gandra, ainda ali reside, na sua própria casinha, embora tenha as três filhas bem perto e sempre com ela, de dia e de noite, todos os dias.

É a mais nova de 10 irmãos e foi a única que ultrapassou a marca dos 100 anos. Fez 101 a 10 de Fevereiro último.

O pai era, inicialmente, lenhador e corticeiro e, só mais tarde, “arranjou terras de renda” e começou a dedicar-se à lavoura. “Quando era mais nova ia com o meu pai para o monte, ajudá-lo no trabalho e a serrar”, recorda a centenária que começou cedo a fazer-se à vida, assim como os irmãos.

Só ela e outra das irmãs mais novas foram à escola. Eram tempos difíceis e o dinheiro não chegava para tudo. Maria Rosa andou até à quarta classe. Não esconde que gostava de ter ido mais longe. “No meu tempo só ia à escola quem quisesse. Andei poucos anos, porque eram tempos de miséria e a minha mãe não tinha dinheiro para me comprar os livros. Só tinha o de leitura e o de gramática. Eu devia ter seis livros e só tinha dois. Por isso, um dia resolvi que não ia mais para a escola. A minha mãe bateu-me”, conta. Mas não voltou mais. Desses tempos, não esquece a rigidez de um ensino onde quando se ia ao quadro negro “não se sabia se ia cair a cana”. “Eu nunca apanhei um bolo”, comenta a rir. “Gostava de estudar. Se os meus pais pudessem gostava de ter continuado”, reconhece a sénior. Do lado as filhas comentam: “era inteligente e se fosse hoje era engenheira”. Foi ela que, à luz da candeia, à noite, na cama, ensinou a uma das irmãs mais velhas, que não foi à escola, as letras.

Mas Maria Rosa arrumou a lousa – os cadernos da época, onde as letras e números se escreviam e reescreviam repetidamente – e dedicou-se ao trabalho. Naquela altura, o comum para as mulheres era ir servir ou trabalhar a terra e fazer o serviço de casa.

Tempos alegres em que se cantava e dançava

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Os pais tratavam da terra e tinham animais, como vacas, toiros, porcos e galinhas. Ela recorda tempos alegres em que quando se ia à erva se “cantava e dançava” nos campos. “Ia trabalhar sempre contente”, afirma a mulher de 101 anos, que preserva a lucidez e gosta de conversar.

“Oh pedras desta calçada, levantai-vos e dizei, quem vos passeia de noite, que eu de dia bem o sei”, canta, dando exemplo das músicas do antigamente.

Além de ajudar na lavoura, fazia o trabalho de casa. Lavar roupa era das suas actividades preferidas. “Gostava muito de lavar e de ver a roupa branca. Juntávamo-nos e íamos lavar a roupa ao ribeiro e metia-se a roupa a corar. Quando não havia água aqui íamos lavar a Sobrado”, diz. Muitas vezes, também ia buscar água à cabeça, com um caneco. E caminhavam-se quilómetros a pé, para ir a Paredes, buscar gado e azeite.

Apesar de serem tempos difíceis, a sénior considera que eram “tempos alegres”. “A gente era mais nova e não pensava na vida. Os tempos de hoje são mais tristes mesmo havendo mais fartura de comer, mais conhecimentos, mais liberdade”, acredita a mulher de Gandra.

É que sempre houve falta de informação e houve muita coisa que só se percebeu depois do 25 de Abril, admite. “Não se sabia muito do que se passava, só que havia miséria e guerra no Ultramar”, explica. E se muitos sobrinhos dela foram e voltaram, outros não tiveram essa sorte. “Há uma senhora de Rebordosa a quem ficaram lá os três filhos que tinha”, lamenta Maria Rosa. Por isso, não é de estranhar que sempre que alguém da terra voltava do Ultramar se fizesse festa.

Também não esquece que, nesses tempos de Salazar e dos racionamentos, “havia muita fome” e muita gente “a pedir na beira das estradas”. Em casa dela “houve sempre pãozinho”, apesar de não haver fartura. Ela, muitas vezes, foi pedir pelas portas, a cantar, para ajudar “os pobres e miseráveis”.

“O homem da casa”

Além da lavoura, Maria Rosa das Neves fazia camisolas e meias e também fiava linho (semeava, colhia e fiava) para vender para fora. Era algo feito à noite, à luz da candeia e do gasómetro. Isto antes de casar.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Nunca prestei para nada, não era bonita”, comenta a sénior. Já tinha namorado outros moços, mas casou só por volta dos 30 anos, depois de 14 meses de “namoro à porta”. Ele, José António, mais velho, com 34 anos, era de Recarei, e andava a servir num lavrador ali perto. Já se conheciam pelas actividades em que participavam em conjunto, como desfolhadas. Era comum, naquele tempo, os agricultores ajudarem-se. “Víamo-nos nas tardes de domingo e dias santos. Encontrávamo-nos ao portão. Os meus pais não vigiavam que não era preciso”, assegura a sénior.

Para ela nunca foi preciso escrever grandes cartas, era ali que conversavam e se conheciam. Mas, muitas vezes, Maria Rosa escreveu cartas que as amigas queriam mandar aos pretendentes. “Eu escrevia o que me diziam, só compunha porque elas não sabiam compor o que queriam dizer”, explica.

Mesmo depois de casada, ela, a mais nova, ficou sempre a ajudar os pais. “Eles já eram velhos e não podiam trabalhar e eu fazia o trabalho mais pesado. Era o homem da casa”, afirma. Ainda esteve para ir trabalhar para uma fábrica, mas a mãe adoeceu “e não tinha quem olhasse por ela”. “Fazia o serviço da lavoura como um homem, enxada ao ombro, pão e cebola com sal, que não havia mais. Quando era de manhã, levava-se cafeteira e fazia-se café”, recorda. Ela ainda gosta muito de café, toma todos os dias de manhã.

O marido foi trabalhar para as pedreiras, durante 17 anos, e depois para uma fábrica em Sobrado. Ela ajudava os pais e cuidava dos filhos e ia ajudar outros agricultores. Viveu uma vida “feliz” e só uma vez se chatearam, por causa de “uma vaca arisca”, mas rápido se entenderam. Não havia discussões, garante a centenária.

Perdeu o marido há cerca de 26 anos. “Mas todos os dias falo com ele e com a minha filha. Estão um ao pé do outro”, acredita.

“Manca e cega ia apanhar covid?”

Quando a mãe de Maria Rosa morreu já tinha 73 netos… Ela tem menos. Teve cinco filhos, mas um menino morreu à nascença e a mais velha faleceu recentemente. Restam-lhe três meninas: Cidália, Ana Maria e Marília que se revezam para cuidar dela diariamente. Tem 10 netos e 11 bisnetos.

Todos os dias está na sua casa ou em casa de uma das filhas. “Não queria sair de minha casa”, assume. Da mesma maneira que não quis ir para o centro de dia. Passa os dias por ali, na companhia de uma das filhas, que também dormem com ela, a rezar, a ouvir a televisão e a enervar-se com as notícias, sobretudo as da guerra e as da “pouca vergonha” que se vive em Portugal. “Agarra-se” muito ao terço. “Não rezo por mim, rezo pelos outros. E agora também rezo pelos velhinhos”, refere.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Como gosta muito de conversar costumava receber muitas visitas, que apenas foram travadas pela pandemia. “Manca e cega ia apanhar covid?”, brinca a sénior que não teve medo. Toda a gente da família apanhou, menos ela.

De saúde está relativamente bem. A visão é o que mais a afecta. Está quase invisual. Tem canadianas e cadeira de rodas que quase não usa.

Já partiu uma perna. E também já estalou a coluna e fracturou a bacia devido a uma queda há dois anos. Curou-se em dois meses. Antes esteve mal do pâncreas no hospital e há três anos que tem pacemaker.

Quase não toma medicamentos. Só um para “o sangue grosso”, um para dormir (desde que a filha faleceu) e um Ben-u-ron quando há dores (raramente).

“Tenho pena de deixar as minhas filhas, mas estou a dar muito trabalho”

Quando vai ao hospital quer ir a caminhar, não gosta que a ponham na cadeira de rodas. A filha diz que tem vergonha. Ela diz que é porque ainda consegue.

Nos 100 anos houve festa. “Foi tão bonito, gostei muito”, conta Maria Rosa. Vieram pessoas de toda a freguesia. Foi uma festa grande, recebeu muitos ramos de flores. Um vídeo com a família toda aí apresentado ainda a faz chorar. Não o vê, mas ouve a música e as filhas lêem-lhe as frases. “Eu sou velha. Nunca pensei chegar aos 100 anos. Uma pessoa com 90 anos já tem muita idade. A minha idade já é demais”, sustenta a sénior.

Não sente arrependimentos de nada, embora diga que “pecados todos temos”. “Tenho pena de deixar as minhas filhas, mas estou a dar muito trabalho”, lamenta a centenária.

Número de centenários duplicou no Tâmega e Sousa

Portugal tinha, em 2021, data do último Censos, um total de 2801 centenários, ou seja, pessoas com mais de 100 anos. Trata-se de um aumento de 84% face a 2011, quando 1526 habitantes tinham atingido essa idade no país, revelam os dados do Instituto Nacional de Estatística. 

Numa década, o número de centenários na região do Tâmega e Sousa duplicou. Se 24 pessoas tinham 100 ou mais anos em 2011, em 2021, o número já tinha subido para as 49. São quase todas mulheres (44).

Olhando aos cinco concelhos acompanhados pelo Verdadeiro Olhar – Lousada, Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel e Valongo -, em 2011 eram 13 os centenários, número que aumentou para 30, em 2021, – 131% -, dando mostras de que poderá continuar a crescer nos próximos anos.

O concelho com mais centenários à data do último Censos era Penafiel, que passou de um para 11, um aumento de mil por cento. Segue-se Valongo, com nove pessoas com 100 anos (eram oito em 2011), Paredes, com seis (quatro em 2011), e Paços de Ferreira, com quatro (zero em 2011). Lousada era, em 2021, o único concelho em que não existiam centenários.

Fonte: INE