Fotos: Direitos Reservados (ver créditos na imagem)

Augusto Oliveira, de Paredes, completou, recentemente, a PT281+ Ultramarathon Portugal.  

Inspirada na Badwater, dos Estados Unidos da América, e na brasileira BR135+, esta prova criada em Portugaç tem “uma das maiores distâncias do mundo em corrida pedestre”. “O nome da prova avança já a distância percorrida, são mais de 281 quilómetros de trilhos pedestres na Beira Baixa”, refere a organização.

O paredense completou a prova em pouco mais de 63 horas, entre Belmonte e Proença-a-Nova. Participaram 72 atletas e 24 desistiram.

“Já participei nas provas mais duras do mundo e estava a faltar-me a PT 281 no currículo”, explica.

“Já corri as que são consideradas umas das 100 milhas mais duras do mundo, a Ronda dels Cims em 170 quilómetros em 60h44m, participei na Badwater, 117 quilómetros em 40h15m, na Tour des Geants, 338 quilómetros em 145 horas, na UTMB – Ultra Trail Mont Blan, de 168 quilómetros em 43h44m, e cheguei ao fim. Já fiz provas com temperaturas de – 15 graus e outras a rondar os 50 graus. Já fiz provas aos –86 metros e aos 4.000 metros de altitude. Já fiz provas nos ambientes mais adversos do mundo, no deserto, em alta montanha na selva. Enquanto eu acreditar eu consigo. Este é o meu lema, é nisto que eu acredito, e ainda estou à espera de alguém que crie um desafio que eu considere impossível”, salienta o atleta.

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“Se queres subir ao céu, vais ter que passar pelo purgatório e pelo inferno. Vais ter que, falar sozinho, falar com deus, alucinar, questionar-te se o que estás a ver é a realidade. Vais ter que correr, caminhar sozinho ou acompanhado, vais fazer tudo a solo ou vais ter ajuda, vais partilhar as tuas dores, com alguém ou simplesmente vais aguentá-las tu mesmo. Mas uma coisa é certa: para chegares ao fim vais ter que percorrer 281 quilómetros, por planícies áridas, subir a castelos, correr em estradões empoeirados, com rectas de perder a vista, passar horas e horas sem encontrares uma única pessoa, vais ter que dosear muito bem a tua água, pois nunca saberás quando vais encontrar o próximo ponto onde possas abastecer. Durante todos estes quilómetros vais passar por momentos em que te vai apetecer desistir, em que vais colocar em causa a tua própria sanidade mental, em que vais dizer a ti ‘porque raio eu me meto nestas coisas’. Vais passar pela alegria e felicidade, pela angústia e desespero, pela privação do sono, vais ter fome e sede, mas sabes que se te mantiveres focado e dedicado vais atingir a meta, e depois já ninguém te vai tirar isso, e vais pertencer a um lote restrito de pessoas que atingiram este patamar”, conta Augusto Oliveira em discurso directo.

Recorde-se que foi o desporto que mudou a vida de Augusto Oliveira. Depois de uma vida marcada pelo consumo de drogas e álcool, o paredense esteve um mês em coma, enfrentou duas tromboses venosas profundas e duas intervenções cirúrgicas, com os médicos a darem-lhe poucas hipóteses de sobrevivência e de regressar a uma vida normal. Começou a competir e nos últimos anos já percorreu milhares de quilómetros. Já correu e concluiu uma das ultramaratonas mais difíceis do mundo: a BadWater 135.

O relato na primeira pessoa

Belmonte

Os preparativos para a longa viagem de 281 quilómetros começaram na magnífica Aldeia Histórica de Belmonte. Como no início de qualquer aventura, é a alegria e boa disposição que impera, e, como muitos atletas já não se encontravam há bastante tempo, devido às condições actuais (Covid-19), esta festa de reencontros foi mais efusiva.

18h00 – Partida, feita de forma tranquila, em que o ritmo era baixo, o calor abrasador de final de tarde marcava presença. Os primeiros grupos iam-se formando conforme o ritmo de cada um. Isto não é como começa, mas sim como acaba, eu usava uma velha expressão adaptada às ultra-distâncias: “Começa a prova com 80 anos e termina com 40, pois só assim conseguirás enfrentar esta longa jornada que se vai estender por quilómetros e quilómetros, por dias e dias.

De Belmonte ao Sabugal são 35 quilómetros de altos e baixos, em que o terreno é um pouco acidentado, com algumas subidas que te começam a pôr à prova. Nesta etapa em que tudo se desenrolava de forma tranquila, embora não se possa ir perdendo muito tempo, é sempre preferível ir ganhando uma boa margem de uma base de vida à outra, para teres possibilidade de descansar nas bases e preparares a próxima etapa. Se vais “queimando” as barreiras horárias vai chegar um momento em que tens que fazer um esforço maior e corres o risco de ser barrado. Chego ao fim desta primeira etapa por volta das 23h00 e com 5h14 de prova na 55.ª posição, com uma margem bastante boa, pois esta base de vida só encerra às 1h30.

Sem tempo a perder tempo e como ainda estamos nos primeiros quilómetros, parto para a segunda etapa que nos vai guiar até Penamacor.

Penamacor

Esta será uma das maiores etapas, são 45 quilómetros. Até aqui, mantinha-me com o mesmo grupo que tinha acompanhado desde início, e pretendia seguir esta estratégia, pois correr acompanhado é mais motivacional e o nosso desempenho é melhor. O pelotão ainda se mantinha animado e activo, mas com o passar das horas e já com a primeira noite, que ia a meio, alguns atletas iam encontrando novas estratégias, de aguentarem o ritmo de corrida.

Chego a Penamacor já de manhã (7h25), uma etapa que me demorou 8h13. Esta é a primeira noite sem dormir, e com uma margem muito boa. Esta base de vida só encerra às 12h00. Embora tivesse bastante tempo para dormir, decidi descansar só um bocadinho e segui em frente. Neste momento ficava sozinho, um dos meus companheiros de corrida tinha desistido neste ponto. Continuo sozinho e abdico de dormir um bocado. Só preparo rapidamente a mochila para enfrentar 41 quilómetros que me vão levar a Penha Garcia.

Penha Garcia

O calor começava a apertar e uma noite sem dormir começava a testar a nossa resistência. Nesta altura da etapa, tinha começado a fazer companhia a uma atleta do Uruguai e, juntos, íamo-nos orientando de forma razoável, embora com alguns erros de GPS que levou-nos a fazer mais uns três ou quatro quilómetros, com a passagem por Monsanto com uma subida a pique até às portas do castelo. Ainda consegui comer um gelado de puro gelo, o que debaixo daquele calor tórrido foi fantástico.

A aproximação à base de vida de Penha Garcia foi torturante, pois já estava a ser um costume, com as chegadas ao fim de cada etapa, eram sempre a subir o mais possível.

10 horas é quanto demoro a fazer estes 41 quilómetros. Chego às 17h41 na 56.ª posição. A base fecha às 22h30. Ainda mantinha a vantagem muito confortável e o sol ainda ia alto. Decido tomar um banho, tentar dormir uns 30 minutos e alimentar-me bem, pois outra noite aproximava-se. Embora não tenha adormecido pelo menos descansei, cerca de uma hora, e retomei a viagem, ainda na companhia da uruguaia.

Idanha-a-Nova

A próxima etapa ia-me guiar até Idanha-a-Nova, uma etapa de 32,5 quilómetros, ia ser uma etapa sem grandes subidas, só a parte final é que ia repetir o que se tinha feito até aqui, subir e subir até ao ponto mais alto da vila.

Foi uma etapa que demorou 8h13, chego na posição 50. Já ia recuperando alguns lugares na tabela e teimava em manter-me em prova sem aproveitar para descansar, dormir. Embora tenha perdido cerca de 45 minutos nesta base de vida, lá continuei para a próxima etapa que voltaria a ter uma distância de maratona.

De Idanha-a-Nova a Lentiscais, voltaria a enfrentar mais uma noite, praticamente sem dormir e as consequências começavam a notar-se, algumas alucinações tomavam conta da minha imaginação. Eu e a minha companhia de corrida tínhamo-nos separado, pois a nossa “relação” começava a ficar tensa, devido ao cansaço, às noites mal dormidas, à distância já percorrida – mais de 150 quilómetros. Depois de umas “discussões” devido ao GPS, cada um seguiu a seu ritmo.

Durante este longo e penoso trajecto, quase a adormecer enquanto corria e caminhava, ia constantemente procurando uma sombra para dormitar um pouco. A paisagem árida, seca e torturante pedia que eu encostasse um pouco, e entre árvores secas, vedações de arame farpado, tufos de palha ressequida pelo sol, ia adiando o meu propósito, até que avisto um pequeno curral cercado por um muro, onde três atrelados estavam estacionados, pensei: Sítio ideal para dormitar.

Encostado ao muro, olho para a foto que trago na capa de protecção e sorrio para aquela bela mulher que adoro e que me vai dando forças para acreditar que consigo, sorrio e rapidamente adormeço. Não sei quanto tempo passou, quantos atletas passaram por mim, sei que acordei mais vigorado e dois atletas nessa altura estavam a passar por mim e disseram-me: ‘Um senhor disse-nos que estava um atleta a dormir encostado a um muro há cerca de 30 minutos’.

Lá segui com essa dupla, a Sãozinha e mais um atleta Belga, mas não consegui aguentar o rito deles. Mas não demorou muito tempo até aparecer um atleta espanhol, que seguia ao meu ritmo, talvez um pouco mais baixo, embora conseguíssemos coordenar os dois andamentos. Certas vezes, eu adiantava-me um pouco mais, mas esperava por ele, e fui fazendo isso ao longo de vários e vários quilómetros e ia dormitando aos poucos e tentando manter-me minimamente acordado uma hora a correr e a caminhar. Passado este tempo sentava-me e fechava os olhos durante 15 minutos e assim a zona baptizada como o vale da morte, foi ficando para trás e finalmente Lentiscais aparecia ao fundo ainda como uma miragem, que se ia tornado cada vez mais real.    

Lentiscais

Quase a dobrar a barreira dos 100 quilómetros, chego ao fim de 10h59, depois de passar a última base de vida em Idanha-a-Nova, são 13h00. A margem continua a ser bastante boa, pois esta base só encerra às 19h00. Mesmo assim, depois de descansar mais um bocadinho, pois a Flor e o Carlos Madureira insistiam que eu o fizesse com uma certa urgência, pois era notória a minha falta de coordenação física e mental, lá me consegui recompor mais um pouco e volto a fazer-me à estrada, rumo a Vila Velha do Ródão, são 35 quilómetros. Algures entre estas duas bases, junto-me a um atleta – André Barros -, e a partir daqui formamos uma dupla que nos ia levar até aos 281 quilómetros. André um excelente atleta, com um ritmo muito constante e equilibrado, uma pessoa muito ponderada nas decisões e na gestão de esforço.

A prova tornou-se mais fácil, pois correr em parceria é mais produtivo, rentável e motivador. Começamos a aumentar o ritmo, embora sem nunca entrar em “loucuras”, começamos a ultrapassar alguns atletas, o que nos ia motivando mais e, ao chegar a Vila Velha do Rodão, a equipa do André foi-nos receber com entusiasmo. Acordamos que perderíamos cerca de 1h15 nesta base de vida, 30 minutos para preparar o CamelBak, comer alguma coisa, curar as feridas e 45 minutos para dormir. Pouco dormi, mas pelo menos descansei e repus muita energia e uma breve “cura do sono” que veio a dar resultados nas etapas que faltavam.

Montes da Senhora

Segundo os relatos de outros atletas que já tinha feito esta parte do trajecto noutras edições disseram-nos que era um percurso um bocado mais fácil do que o anterior, o que nos deu mais ânimo para esta etapa que fazia a ligação até Montes da Senhora, uma distância de quilómetros. Só de pensar que nos faltavam só mais duas etapas de aproximadamente 25 quilómetros, ou seja pouco mais de uma meia maratona, deixava-nos empolgados e com vontade de vermos a Aldeia Ruiva, que estava cada vez mais perto e ao nosso alcance.

Foi subir e mais subir em alcatrão, foi um autêntico prémio de montanha de primeira categoria. Fomos subindo calmamente, fomos entrando em alguns trilhos com um constante carrocel, em que as subidas teimavam em parecer cada vez mais altas, mas era só uma forma de olhar para elas, pois o cansaço e o desgaste já eram muitos. Com este sobe e desce constante demorei cerca de sete horas e percorrer estes 26 quilómetros, e, por volta das 3h30, estávamos na última base de vida.

Foi complicado, encontrar um cantinho para tentar descansar um pouco, mas a Flor Madureira lá cedeu um cantinho e com uma paragem cerca de 40 minutos, que deu para dormitar, preparar a CamelBak para a derradeira etapa final. Esta base fechava às 8h00, por isso a margem continuava a ser bastante confortável.

Aldeia Ruiva

Agora estava apenas a quilómetros da meta e, embora esta fosse a última etapa, a etapa da consagração, queríamos chegar bem ao fim. Começamos muito devagar e, lentamente, fomos avançando quilómetro após quilómetro. Encontramos o Luís e o Rui que estavam um bocado perdidos e lá os ajudamos.

Durante este trajecto alguns atletas iam passando por nós, mas o nosso ritmo não se alterava, era a etapa da consagração (como fazem na última etapa das grandes Voltas), mas este cenário iria alterar-se de uma forma radical.

Por culpa de alguns ignóbeis com uma atitude anti-desportiva, eu e o André decidimos que aqueles que nos “desprezaram” não iriam conseguir à nossa frente. Aí comecei numa autêntica “cavalgada” rumo a Aldeia Ruiva.

Cada atleta ou grupo de atletas que nós avistávamos, traçávamos um objectivo, ultrapassá-los, e nunca deixamos de correr a um grande ritmo, e, para quem já tinha corrido e caminhado 260 quilómetros, conseguíamos manter excelentes tempos ao quilómetro. Dava a sensação que ainda estávamos no início desta grande aventura.

Até que, ao fundo a voz do speaker já se anunciava, entoava por todo o vale, faltava vencer mais uma pequena subida, digo pequena pela sua extensão, pois, comparativamente a outras que já tínhamos feito, esta era minúscula, mas grande na dificuldade depois de fazer 278 quilómetros. Qualquer pequena inclinação de alguns metros já começava a manter respeito.

Ao chegar ao top da subida, deslumbro o tão ambicionado pórtico, aquele pelo qual tive de esperar 63 horas, quase sem dormir, com sono, com fome, com sede para o conseguir passar.

Corro, corro descida abaixo, quero sentir aquele momento em que ergo os braços e grito ‘CONSEGUI, CONSEGUI’. Sentir aquela descarga de adrenalina que me dá a sensação única de dizer: Eu acreditei, eu consegui.