Diário dos dias de pandemia

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22/03/2020

Para aquelas e aqueles que, nestes anos, têm estado e ainda poderão estar ao meu lado, para os familiares, grandes e pequenos amigos, colegas, alunos e ex-alunos, sem esquecer os que me são ou a quem sou indiferente a até para os inimigos:

Evitemos o vazio da alma. É proibido. Sempre, mas sobretudo agora.

Suspendo, pelo menos neste tempo, os ódios de estimação que, confesso, também cultivei ao longo da vida.

 

24/03/2020/

Acordas em pânico. Sentes-te mais gordo ainda. Corres para o WC. A balança confirma. Mais 1,5 kg em 15 dias. Dás conta que, em três noites, comeste os dois últimos pacotes de bolachas de chocolate.

O fígado parece não estar satisfeito. Esgotaste o Cholagutt. Também não tens guronsan.

Não sais de casa há quase 8 dias. Precisas de sair. Também não tens pão fresco, laranjas e os limões parecem-te muito leves e deixam-te um estranho sabor a pimenta (?) na língua.

 

25/03/2020

Acordo com a música de Jorge Palma na ponta da língua. O “Bairro do Amor”. Vão lá  saber-se as razões.

Tens de trabalhar. O computador não abre os ficheiros de que precisas.

O vírus parece tê-lo apanhado mais depressa do que ao dono.

“Empancar” logo pela manhã é a pior maneira de começar os dias. Sobretudo estes.

O sol, lá fora, paradoxalmente, impele-te e impede-te a rua:

– Fica em casa, pá!

Obedeço, mas sinto necessidade de recorrer, de novo, à “farmácia cá de casa”. Passo por lá, mas não lhe toco.

Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar, mas já não há cabimento para tanto medicamento.

 

25/03/2020

Está a tornar-se num vício. Mal acordo fico horas à espera da divulgação dos números das últimas 24 horas. Ao mesmo tempo começo a desconfiar mais deles. Dos números e de quem os divulga. Agora, os presidentes das câmaras municipais entenderam que se os outros sabiam contar até aos milhares eles haviam de saber contar até às dezenas. Foi o caos.

As televisões começaram, finalmente, embora em número reduzido, a ouvir cientistas e técnicos que estão na ” frente do combate”.

Tive de levar à rua dois sacos dos grandes, dos do Lidl, na mão. Um cheio de lixo e outro de roupa suja para levar à “lavandaria da mamã”. Meti a da roupa no Molok e fiquei com a do lixo na mão.

Não vai ser por isso que me vou sentir infetado.

Talvez afetado. Vamos esperar para ver!

 

26/03/2020

Falta o sol aberto de ontem ou ainda é cedo? Logo vês.

Ontem, pela primeira vez, a Diretora Geral de Saúde teve de explicar as diferenças dos números que se anunciaram sobretudo nos últimos dois dias. Não se saiu muito bem.

Para mim, que não percebo nada disto, se tivesse esclarecido que a confusão se instalou a partir do momento em que as autarquias também começaram a divulgar os “seus” números talvez se percebesse melhor.

Em situações desta gravidade, quem dirige as operações devia ultrapassar as chefias intermédias, dizia o psiquiatra Daniel Sampaio, na Grande Entrevista, do canal 3 da RTP.

Foi mais longe ao afirmar que as ARS`s não resolvem nada nisto. Só complicam. Concordo. Estes “organismos intermédios, médios, defesas , avançados, treinadores e diretores” são albergues de muitos boys e girls deste e doutros governos que só ajudam a dificultar o funcionamento eficaz dos sistemas. Da Saúde e dos outros.

Mais um excelente trabalho do canal público de televisão. Começa-se agora a ouvir mais cientistas e especialistas em Epidemiologia, Virologia e até Psiquiatria. Médicos, principalmente.

Cá por casa, apercebi-me que há vida para além da epidemia.

Não interessa porquê, mas há e eu sinto. Logo, ainda existo!

Mitiguemos, então!

 

27/03/2020

Pronto, digo poucas vezes, mas quando digo é CODIV-19. Dizer só Corona Vírus é errado porque há outros e fartei-me de ouvir chamar-lhe Novo Corona Vírus. Já passaram muitos dias para continuar a ser novo, É uma nova estirpe, dirão os mais conhecedores.

A RTP, com as três “Grande Entrevista” fez nesta semana, na minha opinião, o melhor serviço público que se pode fazer nestes tempos.

Primeiro, fez-me a vontade. Fartei-me de escrever que estava farto de ouvir “Tudólogos”, aquela espécie de gente que comenta tudo e mais alguma coisa e sabe tanto ou pouco mais ou menos do que eu. Queria ouvir cientistas, médicos, técnicos qualificados que, por trabalharem com o fenómeno, nos ajudam a perceber tudo em cada frase que proferem. Normalmente, são modestos, amantes desinteressados do trabalho que fazem, humanistas generosos e, sobretudo, muito competentes. Esta semana, a Grande Entrevista, trouxe à antena o médico que dirige aquele que será o maior hospital durante a predominância da crise, o do S. João, no Porto, um grande psiquiatra, Daniel Sampaio e, ontem, uma perspicaz investigadora.

 

28/03/2020

O DIA SEGUINTE

É quando dás conta de que conseguiste dormir apesar do dia anterior.

É quando acordas a pensar nas mesmas pessoas que, na véspera, não souberam ou não quiseram que o teu dia fosse melhor.

É quando te apercebes e já convives com a nova realidade.

É quando, enfim, és menos feliz do que no dia anterior, mas, mesmo assim, abres a janela do teu quarto e, haja chuva ou sol, pensas:

-Estou vivo e continuo preparado para viver.

É quando, sem grandes novidades, confirmas quem amas e conferes que não são em maior número os que não te querem bem.

É, enfim, quando dás conta que pode não ser pior.

O dia seguinte.