A luta pela liberdade

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O cristianismo tem exigências surpreendentes. Por exemplo, quem foi à Missa na quinta-feira passada teve direito a um susto, quando foi lida uma parte do capítulo 16 do Evangelho de S. Lucas. Fala de um homem a quem a vida correu bem, excepto pela infelicidade de não ter cuidado de um miserável que lhe apareceu à porta. Por causa disso, foi parar ao inferno, sem apelo.

O tempo de Quaresma repete este apelo a cuidarmos dos que sofrem. Segunda-feira foi o dia do português S. João de Deus, que mobilizava os bons: «irmãos, fazei o bem a vós mesmos!».

As necessidades do mundo são muitas, desde as doenças e os desastres naturais, à desgraça das famílias que se desunem, às injustiças económicas, aos perigos que os migrantes correm ao escaparem da miséria ou da guerra. A Igreja confronta-nos com tudo isto, convocando-nos «ao jejum, à oração e à esmola», quer dizer, à penitência, a uma maior relação com Deus e ao cuidado dos outros. Ao contar a parábola do rico que foi parar ao inferno por não ter ignorado o pobre, Jesus diz-nos que estes propósitos são para tomar mesmo a sério, totalmente a sério.

A todos os males, a guerra acrescenta ao sofrimento a maldade de quem o inflige. Há pouco tempo, em África, o Papa observava: «O mundo está em guerra. Do Congo à Ucrânia, mata-se com uma crueldade perturbante».

É verdade que o aborto e a eutanásia são crimes terríveis, mas podem ser gestos perturbados. Quantas pessoas desistem de abortar quando falam com voluntários que as ajudam. Isto faz pensar que, se não vamos ao encontro de quem passa por maus momentos, podemos ser responsáveis por decisões muito graves que eles venham a tomar.

A guerra é particularmente grave, porque é um trabalho colectivo e metódico de impiedade. E quando é uma sociedade desenvolvida que toma a iniciativa da guerra, como a Rússia, é assustador pensar na culpa grave e generalizada daquele povo.

Há mais de um ano, o mundo assiste estarrecido à invasão da Ucrânia. Apesar de muitos países condenarem a invasão, a comunidade internacional não consegue impor a paz, com medo das ameaças nucleares da Rússia. Além disso, a China e outros países comunistas bloqueiam os esforços de paz. Assim, a pequena Ucrânia luta quase isolada contra o gigante russo, sofrendo milhares de mortos e feridos, contando militares e população civil. Milhões de pessoas tiveram de fugir do país, milhões de famílias estão separadas pela guerra há mais de um ano. E, entre os russos e os mercenários contratados pela Rússia também há muitas baixas, que precisam das nossas orações.

Estas situações suscitam perguntas exigentes: Rezo? Tenho gestos de solidariedade? De protesto? Como primeiro passo, o Papa exorta-nos a chorar.

— «A guerra é destruição. Olhemos para a Ucrânia e não nos envergonhemos de chorar» —disse ele a umas centenas de refugiados ucranianos depois da projecção de um documentário sobre a Ucrânia.

O Papa sentou-se na última fila da sala a ver o documentário «Freedom on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom» [A liberdade em fogo: a luta da Ucrânia pela liberdade], do realizador Evgeny Afineevsky, juntamente com cerca de 240 refugiados ucranianos. Segundo a Sala de Imprensa do Vaticano, o Papa ficou muito comovido com aquele horror. Sentada perto do Papa estava Anya Zaitseva, mulher de um soldado ucraniano capturado pelos russos, com o filho Sviatoslav, de um ano em meio, ao colo. O bebé brincava e mordia a bengala do Papa e o Papa sorria-lhe e fazia-lhe festas.

No final, falou com os presentes e ouviu histórias dolorosas. A mãe de outro soldado, que defendia a siderurgia de Azovstal em Mariupol e continua numa prisão russa, ofereceu-lhe três presentes: Uma flor, símbolo da resistência até que se alcance a liberdade; uma bandeira azul e amarela da Ucrânia, que Francisco beijou e abençoou; e um saquinho de sal, presente típico da Ucrânia, porque, explicou ela, «o sal da terra é símbolo da força, tão precisa nesta batalha muito dura e muito trágica».

Muitos outros tiveram oportunidade de falar com o Papa que, no final, rezou com eles. Recordou-lhes que Deus criou o homem para «cuidar da terra, para a fazer crescer, para a tornar bela. O espírito da guerra é o contrário: destruir, destruir… não deixar crescer, destruir tudo, homens, mulheres, crianças, anciãos, todos. (…) Olhemos para a Ucrânia, rezemos pelos ucranianos e deixemos que o coração se encha de dor. Não nos envergonhemos de sofrer e de chorar, porque a guerra é destruição. (…) Que Deus nos faça compreender isto».

Pediu a Deus: «Curai os nossos corações, curai a nossa mente, curai os nossos olhos (…). Semeia em nós a semente da paz». Despediu-se pedindo a todos que rezassem por ele, que ele rezaria muito pela Ucrânia.