Ratzinger e eu

0

Sinto o dever de vos contar esta história, como homenagem à integridade do Papa Bento XVI. Uma página de opinião do «Diário de Notícias» (2 de Junho de 1990, página 7), que publicava regularmente longos elogios da superioridade intelectual do marxismo, atacou violentamente uma conferência do Cardeal Ratzinger. Com extensas citações, mostrava que ele propunha que desprezássemos a verdade e louvássemos a mentira. Por exemplo, ele teria dito: «é legítima a recusa de resultados científicos válidos (da verdade científica) quando eles contradisserem a centralidade histórico-social de normas, crenças ou valores legados pela tradição». Tudo documentado, citando entre aspas o texto da conferência.

Como é que aquela desfaçatez primária se podia explicar? Eu tinha lido textos extraordinários dele, de uma abertura intelectual notável, de uma rectidão tão grande… Fiquei com vontade de ler a conferência.

Infelizmente, as citações remetiam para uma revista italiana de que eu nunca tinha ouvido falar. Na época, havia «e-mail» entre as universidades, mas não existia internet propriamente dita. Como localizar a tal revista?

Por sorte, um jornal espanhol falou nela e, através dele, cheguei à fonte.

Novo escândalo! NENHUMA das citações, colocadas entre aspas no «Diário de Notícias», pertencia à conferência. Nalgum caso, a frase estava quase lá, mas antecedida da palavra NÃO, que fora omitida na transcrição. Mas, em geral, não havia sequer relação entre as frases de Ratzinger e as palavras que lhe eram atribuídas entre aspas: em geral, a invenção era de 100%.

Além disso, o tema da conferência era a defesa da razão e da religião fundadas na verdade. A verdade importava mais que tudo e o fim de certa crispação contra a Igreja era positivo, mas a adesão sentimental não constituía uma base saudável para a relação com Deus, a qual tinha de estar ancorada na verdade. E foi sobre a importância da verdade que Ratzinger falou naquela conferência.

Contactei o Director do «Diário de Notícias» e, finalmente!, recebeu-me. Apresentei-lhe a revista onde fora publicada a conferência e disse-lhe que o jornal tinha a obrigação de esclarecer os leitores e de publicar o texto verdadeiro, que era aliás bem interessante. Respondeu-me que os jornais vivem da espuma do momento, que o passado já não lhes interessava e, portanto, não iam desmentir a notícia e, muito menos, publicar a conferência, que era «ainda mais antiga». Não me ocorreu perguntar-lhe até onde ia o interesse de um jornal pelo passado: quantos dias? Para compensar, propôs-me que escrevesse um artigo. Enviei-lho prontamente. Insisti, insisti. Por fim, explicou que era demasiado extenso. Encurtei-o até à dimensão pedida. Enviei segunda via. Entreguei-o pessoalmente, para ter a certeza de que a culpa não era do Correio. Nunca mais tive acesso ao Director, nem o artigo foi publicado.

Quase 20 anos depois, um pequeno grupo de professores marxistas da Universidade de «La Sapienza» opôs-se tão destemperadamente a que o Papa Bento XVI visitasse a universidade que, em vez da visita, o Papa recebeu os universitários de «La Sapienza» no Vaticano.

Dias depois, a última página do «Público» (21 de Janeiro de 2008) voltava à antiga conferência do Cardeal Ratzinger, repetindo os erros de citação. Quem cita em segunda mão arrisca-se a esta figura triste, ainda mais por ter omitido a fonte secundária. Enviei o texto da conferência ao autor do artigo e ele respondeu-me: «tenho pena de a minha crónica sobre o caso de La Sapienza não me ter saído inteiramente bem. Amanhã sairá uma correcção (…)».

Passou o tempo. Semanas depois, recordei-lhe a importância de repor a verdade. Não houve resposta. Apenas, muito tempo depois, uma nota perdida, no final de um artigo, a dizer que um texto anterior, sem referir qual, tinha saído menos bem do que gostaria.

O amor do Papa Bento XVI pela verdade merecia que eu lembrasse estes acontecimentos, como singela homenagem. O lema episcopal dele era «Cooperatores veritatis» (Cooperadores da verdade).