Uma vez gaiato, para sempre gaiato. Ou pelo menos assim defende quem passou a infância na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em Penafiel. Há ainda quem tenha convivido com o Padre Américo e quem recorde uma casa cheia e um tempo em que os mais pequenos ainda andavam descalços.

Manuel Pinto, de 89 anos, e Joaquim Santana, de 59, continuam ligados à Casa. Um foi pedir ajuda porque mendigava pelas ruas, o outro foi levado pela mãe que mal conheceu.

Vagueou pelas ruas e pediu esmola até chegar ao Gaiato

“89 de idade e 74 de gaiato. E continua se Deus quiser”. Assim se descreve Manuel Pinto. Nascido em Rio de Moinhos, nunca conheceu a mãe. Acabou por ir, ainda criança, para o Porto, onde o pai era jardineiro da câmara, e “uns senhores” onde trabalhava meteram-no num colégio interno onde fez a instrução primária. Tinha 14 anos quando o pai faleceu. Viu-se sozinho. Vagueou pelas ruas até regressar à aldeia. “Eu estava abandonado. Estava em casa de uma tia, mas uma tia pobre e com filhos. Andava por lá desamparado, a pedir”, recorda. Uma vizinha que o protegia começou a falar-lhe da Casa do Gaiato recentemente criada em Paço de Sousa.

“Vim de Rio de Moinhos aqui, duas vezes, a pé. As instalações ainda eram na antiga Casa Pia. A primeira vez o Pai Américo não estava, mas aconselharam-me a voltar”, conta. Foi o que fez. O Padre Américo fez-lhe perguntas, recorda. “Contei que andei num colégio que o meu pai tinha falecido, era órfão. E que andava a pedir, na vadiagem”, explica. Foi aceite e entrou na Casa em Agosto de 1944.

“Entrei, tomei logo um banho, cabelo rapado, roupa lavada e juntei-me aos outros”, lembra-se. Foi trabalhar na lavoura, a acartar feixes de feijão dos que se semeavam no meio do milho. “Depois o Pai Américo chamou-me e perguntou se gostava de aprender tipografia. Disse-me ‘vais para o Porto aprender e depois vens para cá ensinar outros rapazes e fazer o nosso jornal e outros trabalhos comerciais para fora’. E fui o primeiro gaiato a fazer o nosso jornal”, lembra-se, numa altura em que tudo era feito letra por letra. “O Pai Américo foi-me dando asas e fui aprendendo”, diz.

Mais tarde, deixaria a tipografia e passaria para o escritório, tratar dos assinantes e endereços do jornal O Gaiato. “Naquela altura era tudo feito à mão, não havia máquinas de escrever”, salienta. E eram milhares de endereços. Esteve ainda na secretaria onde tratou das “saídas e entradas e de dinheiros”. “As fichas dos rapazes que entravam de novo, os processos, o boletim de vacinas e escolar para ver se estava tudo em ordem. Tudo passava pelas minhas mãos”, garante Manuel Pinto. Aí ficou 20 anos.

O Pai Américo era “como um pai amigo dos filhos, mas também justo e recto”

Do Padre Américo Monteiro de Aguiar, que só faleceria em 1956, lembra-se bem. “Quando ele estava doente o quarto dele era ali na Casa Mãe, n cantinho. Íamos lá conversar e ver como ele estava e numa das vezes perguntei como era…”, não diz, mas pensa, se ele partisse. “E ele disse ‘oh rapaz, tu morres e a obra fica’, entusiasmado”, recorda.

As suas memórias são de alguém que era “como um pai amigo dos filhos, mas também justo e recto”. Também havia castigos, salienta. Numa das vezes ficou com o cabelo rapado e foi castigado “em tribunal” a ficar dois dias fora do lar por ter saído sem autorização para ver os festejos de Carnaval.

Manuel Pinto é do tempo da casa cheia. “Chegamos a ter mais de 180 rapazes. Depois os tempos foram mudando, uns foram saindo e a Segurança Social criou um contencioso cá com a Casa, queriam que se obedecesse a certas normas”, realça. Por isso, hoje são poucos os que permanecem. “Tenho pena que não haja cá mais rapazes. Era uma casa que tinha tanta malta e agora não tem quase ninguém”, reconhece.

Não esconde que tem saudades “de certos momentos e até da rapaziada antiga”. Mais do que isso, garante: “continuo a ser gaiato na mesma”.

Reformou-se aos 65 anos, mas todos os dias vem cerca de quatro horas ajudar a instituição no que pode.

Mora em Paço de Sousa, mesmo junto à Casa do Gaiato. É casado e tem duas filhas. Completa 90 anos em Março de 2019, “se Deus quiser”.

“Eu seria o segundo mais pequeno na casa. Nem o meu nome sabia”

Tal como Manuel Pinto, Joaquim Santana também pouco conheceu da mãe. “Pelo que sei seria mãe solteira, pouco vivi com ela. Antes de vir para a instituição estive num outro colégio e com quatro anos vim para aqui”, recorda. Chegou em 1963 e o momento ficou-lhe gravado na memória.  “Subimos na avenida, vínhamos num táxi, e paramos no princípio da escadaria da capela. O padre Carlos, que era o padre substituto do Pai Américo, estava na sacristia. Ela levou-me lá e deixou-me à beira dele. Eles já estariam a par da minha vinda, e foi vê-la a correr para o táxi. Mandaram-me para a cozinha para tomar leite. ‘Dá-lhe leite que ele deixa de berrar’, diziam. Eu acabei e só dizia ‘quero a minha mãe’”, descreve emocionado o homem de 59 anos que se mantém a viver em Paço de Sousa.

A mãe vinha visitá-lo, de vez em quando, mas perdeu-lhe o contacto e o rasto durante vários anos. “Eu já tinha 18 anos quando me falaram que tinha avós e irmãos”, conta, sentado no banco onde, um dia, comeu um churrasco com a mãe, durante uma das poucas visitas.

Era pequeno quando chegou, por isso, confessa, nos primeiros dias teve vida facilitada na adaptação às rotinas. “Eu seria o segundo mais pequeno na casa. Nem o meu nome sabia. Era o Quim. ‘Quim quê? Então não sabes o teu nome? Não’. Eles riam-se. Pegavam em mim ao colo, atiravam-me ao ar”, dá como exemplo. Foi-se integrando e tendo tarefas. Coisas pequenas. Arrancar umas ervitas, varrer.

Apesar de serem quase 200 a organização tornava tudo mais fácil. Estavam divididos, havia rotinas, grupos e chefes. “Ao toque da sineta tomávamos o pequeno almoço, depois dava um toque para a escola e os que tinham escola iam para a escola, os outros iam para as tarefas”, conta.

Sempre que podia agarrava-se às saias das senhoras que visitavam a Casa. “Se pudesse ir com alguma ia”, confessa. Outra vez, tentou fugir com um colega da Régua. Chegaram ao Marco de Canaveses onde suspeitaram e chamaram o padre para ir buscá-los. “Se eu gostava daqui? Que remédio”, diz.

“Ser gaiato é não ter tido uma casa e ter uma casa”

Joaquim Santana passou vários anos na rouparia. Só mais tarde aprenderia uma arte. “Havia uma roupinha melhor para o domingo. Tinha que ver todas as roupas, ver se estavam em condições, ver o que estava por lavar. Era eu que passava toda a roupa. Ainda sou do tempo em que não tínhamos sapatos cá em casa. Cheguei a andar descalço quando era batatinha os pequenos não tinham calçado”, explica.

Seguiu depois para a tipografia. “Escrevi uma carta ao padre Carlos a dizer que queria estudar. Ele disse que ia pensar e deu-me a oportunidade”, refere. Esteve no Porto, depois em Penafiel, mas acabou afastado dos estudos, sendo castigado a ir 10 meses para Coimbra por causa de uma namorada.

Entretanto foi à tropa. Depois casou logo de seguida e teve o primeiro filho. Era empregado de escritório, mas ganhava-se pouco, lamenta. “Trabalhava longe e tinha que apanhar mais que um transporte para ir para a Senhora da Hora e pagava uma renda elevadíssima, pouco sobrava”, afirma.

Foi então trabalhar para a área das vendas, mas estava longe de casa e dos dois filhos pequenos e acabou por abdicar disso e ir trabalhar para a área de formação, na área gráfica da foto composição. Esteve numa empresa do Porto até que a Casa do Gaiato o convidou a vir para a tipografia, divulgar os serviços. Está de volta há cerca de seis anos e é sempre ele que representa a instituição nas feiras do livro, por exemplo.

Sobre o modelo educativo da Obra de Rua não tem dúvidas. “Concordo com este modelo de educação. Plenamente. Este modelo, para mim seria um modelo a copiar. Não tenho nada contra as instituições particulares de solidariedade social mas deveria haver menos IPSS e mais algumas Casas do Gaiato”, defende.

“Eu só tenho a dizer bem da Casa. Se não tivesse tido uma educação bem enquadrada não tinha dado a educação que dei aos meus. A educação que eu recebi foi a que eu dei, ou procurei dar”, salienta Joaquim Santana.

Gostar de ser gaiato, confessa, não gostava. Pelo que isso significava. “Costumo dizer que sou um remendo da sociedade, acho que isso define bem o que é ser gaiato. A minha mãe pôde dizer ‘anda até minha casa, anda até ao meu quarto’. Isso foi coisa que nunca pude dizer. Eu nunca tive quarto, tive uma camarata. Mas os meus filhos já puderam dizer aos colegas ‘anda até minha casa, anda até ao meu quarto’”, explica.

Mas em Paço de Sousa, salienta, encontrou as condições para crescer e a casa que não tinha. “Ser gaiato é não ter tido uma casa e ter uma casa”, assume.