Alminhas

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Fernando Sena Esteves

As tropas de Napoleão, comandadas pelo marechal Soult na segunda invasão francesa, chegavam ao Porto e a população aterrorizada tentou fugir para Gaia atravessando a ponte de barcas sobre o Douro. Era o dia 29 de março de 1809 e a ponte ruiu com o peso da multidão que, sem saber do que se passava, continuava a empurrar para a morte os que iam à frente. Foram mais de quatro mil as pessoas que morreram afogadas nessa tragédia, nada menos que a quarta parte da população portuense da época.

Se fosse agora, talvez se qualificassem estas mortes como “danos colaterais” e podem servir ao menos para colocar em perspetiva certas práticas portuguesas do antigamente, comparando-as com as das civilizadas tropas francesas que deste modo punham mais uma vez em prática os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade. E também não faltaram as pilhagens de bens que iam para França em carroças bem ajoujadas.

Logo surgiu o costume popular de rezar pelas “Alminhas da Ponte”, o qual continua até aos dias de hoje, acendendo-se lamparinas e dando-se esmolas para missas de sufrágio. E já lá vão 200 anos! Em 1897 colocou-se na Ribeira um baixo-relevo de bronze do escultor Teixeira Lopes representando a tragédia. Este costume de rezar pelos defuntos teve em Portugal um grande desenvolvimento depois que o Concílio de Trento no séc. XVI reafirmou a doutrina sobre a existência do Purgatório. Já no Antigo Testamento se encontra uma reveladora passagem no Livro dos Macabeus onde se refere que Judas Macabeu fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas, para que se oferecesse um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas.

Espalhadas pelo país fora, sobretudo nas regiões nortenhas, são aos milhares as “alminhas”, pequenas construções, nichos, painéis de azulejos ou capelinhas, onde se representam as almas do Purgatório, convidando os que passam a rezar pelo seu descanso no Paraíso, muitas vezes com a simples grafia P.N.A.M. para que se reze o “Pai-nosso” e a “Ave-maria”. Portugal é o único país do mundo com esta prática popular e é interessante que nestas representações nunca aparecem as de crianças pequenas, pois que pela sua inocência não precisam da purificação do Purgatório. Numa louvável iniciativa, alguns concelhos têm empreendido a inventariação e restauro das “alminhas”, frequentemente estragadas pelo passar dos anos ou mesmo por vandalismo.

Em contraste com estas práticas estão as que se importam de outros países, como o “dia das bruxas”; as crianças alinham nas brincadeiras sem saberem das suas origens pagãs e os comerciantes que as promovem talvez lhes interesse apenas uns dinheiritos extra que dão sempre jeito. O mesmo se passa com outras “importações”, como a do dia dos namorados. Ao menos este sempre é mais simpático que o das bruxas…

Novembro é o “mês das almas” em que a Igreja recomenda de um modo especial a oração pelas almas do Purgatório e bem podemos fazê-lo, não só no dia 2, mas habitualmente, como pelos nossos familiares, amigos e benfeitores, constituindo um gentil cumprimento de um dever de gratidão… O “mês das almas” tem a abrir a comemoração de Todos os Santos, no qual se comemora “aquela multidão que ninguém poderia contar, de todos os povos, raças e línguas” que no Paraíso já contemplam a Deus e a quem podemos pedir ajuda para um dia lhes fazermos companhia.

Termino transcrevendo um ponto de “Caminho” de S. Josemaria: “As almas do Purgatório. – Por caridade, por justiça e por um egoísmo desculpável – podem tanto

diante de Deus! – tem-nas muito presentes nos teus sacrifícios e na tua oração. Oxalá que, ao falar nelas, possas dizer: «As minhas boas amigas, as almas do Purgatório…».

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Professor Catedrático Aposentado da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto