Foto: DR

Há muito que a solidariedade faz parte da vida de António Santos. O natural de Sobrado, Valongo, tem-se lançado em várias missões para ajudar o próximo, seja além-fronteiras ou até dentro da própria casa. Fundador de um grupo de escuteiros – Agrupamento 1329 Sobrado -, desde cedo que o gosto por ajudar os outros o acompanhou. Costuma levar comida aos sem-abrigo no Porto, faz voluntariado no Hospital de São João, também no Porto, (actividade agora suspensa devido à pandemia), mas queria fazer mais.

Por isso, quando surgiu a oportunidade de participar numa missão dos Missionários da Consolata no Uganda agarrou-a. Durante um mês, em 2017, trocou o conforto da sua casa por dias de dedicação aos outros. Ajudou a reconstruir um orfanato de crianças com deficiência e deu apoio num hospital (que de hospital só tinha o nome).

Em 2019, voltou a sair do país e foi, com um grupo de escuteiros, ajudar nos campos de refugiados na Grécia. Este ano, viu-se impedido de se envolver em nova missão, devido à pandemia, mas a vontade de ajudar foi mais forte. Por isso, pôs em livro as memórias da experiência que viveu no Uganda , fez uma edição de autor, e os lucros das vendas estão a reverter para ajudar uma menina de Paredes (cujos pais são de Sobrado), a pequena Ariel, de dois anos, que sofre de encefalopatia epiléptica e tem atrasos de desenvolvimento, necessitando de tratamentos regulares.

Foto: DR

“Esta acabou por não ser a minha missão. Foi uma missão de muita gente”

António Santos tem 47 anos e é empresário na área da serralharia (construção civil). É casado e tem duas filhas. Foi um dos fundados do Agrupamento 1329 Sobrado, que chefiou durante vários anos, sendo agora adjunto e secretário. “Continuo a educar jovens”, salienta, recordando que sempre foi “fascinado por ajudar crianças, desde o atletismo ao futebol”.

As acções solidárias também não são novidade para este sobradense. É voluntário numa associação que leva comida, e “ouvidos”, aos sem-abrigo do Porto e também faz voluntariado no Hospital de São João do Porto. Mas “tinha muita vontade de fazer algo mais, além-fronteiras”. Só faltava “a coragem e a possibilidade de ir”. Quando se tornou patrão de si próprio a possibilidade de tirar um mês inteiro de férias surgiu e a oportunidade também.

Foto: DR

Já acompanhava o trabalho dos Missionários da Consolata. Em 2016, o grupo de escuteiros apoiou uma angariação de fundos para levar um grupo de voluntários à Tanzânia. Depois, e porque havia um pedido à Consolata para ajudar na reconstrução de um orfanato especial, que dava abrigo a 56 crianças com todo o tipo de deficiência, no Uganda, organizaram-se para nova recolha de verbas. “No Uganda quem tem um filho com deficiência tem de o abandonar ou, se não o fizer, tem de fugir porque é considerado um espírito impuro. A maioria abandona os filhos”, conta António Santos, que recorda que durante a estadia no Uganda foram buscar mais uma criança abandonada nos montes.

Foi num grupo com mais duas adultas e 12 jovens com o objectivo de apoiar a reconstrução do orfanato e ajuda no hospital. “Eu próprio, mesmo que não tivesse nada a ver com a minha área, cheguei a ir fazer partos”, comenta.

Houve um trabalho de preparação antes da viagem. Eram necessários 10 mil euros para reconstruir o orfanato, mas conseguiram em cinco meses angariar 30 mil euros. “Esta acabou por não ser a minha missão. Foi uma missão de muita gente. Muitos fornecedores meus colaboraram, andamos no porta a porta, fomos à porta da Igreja pedir, vendemos bolachas e artesanato. Nós fomos lá e fizemos, mas foi preciso um trabalho muito grande por detrás para isto funcionar”, explica o voluntário.

“As crianças viviam em autênticos buracos”

Foto: DR

A vontade de ir era “tremenda”. Mas quando lá chegaram encontraram uma realidade difícil e a muita preparação não os tinha preparado para a “dureza da missão”. “As crianças viviam em autênticos buracos. As casas de banho eram mesmo buracos. Partimos paredes, fizemos janelas, metemos portas, fizemos casas de banho e metemos luz. E logo que chegamos investimentos cinco mil euros em comida. Só havia meia dúzia de sacos de farinha”, relata. Eles próprios, os voluntários, dormiram todos juntos na mesma camarata, com janelas, mas sem vidros. “Passei um mês a comer farinha”, dá como exemplo.

Orgulha-se de terem deixado a obra a que se tinham proposto “completa”. “Ainda fizemos mais quatro casas de banho equipadas e deixamos dinheiro para os responsáveis comprarem carne”, recorda.

No regresso trouxe muitas memórias e um diário do que tinha vivido em que guardou os momentos que mais o marcaram. Como aquele em que uma menina Havia que nem falava desenhou um avião para dizer que voltava com eles. “São situações que marcam”, reconhece.

Foto: DR

Quem diz isso diz o momento de afecto partilhado com um miúdo que demorava imenso a percorrer 20 metros de distância agarrado a um andarilho, mas “sempre com um sorriso e uma felicidade tremenda”. Um dia, António Santos deu uma corrida e foi buscar-lhe uma camisola da Selecção Nacional que levou consigo na mala. Vestiu-lha. “Ele agarrou-se a mim de tal forma que jamais, mesmo a minha mulher e filhas, alguém me tinha agarrado. Ficamos ali agarrados um ao outro, felizes os dois. Foi uma coisa tão insignificante que significou tanto e isso marcou-me imenso. Como com tão pouco se pode proporcionar tanta felicidade”, afirma o sobradense. No orfanato, recorda, não havia mesas. “Eles comiam no chão e lambiam o chão quando a papa virava”, lamenta. Por isso, arranjaram maneira de restaurar e arranjar mesas e bancos.  

Também não esquece a dureza de ajudar a fazer partos num hospital que de hospital tinha o nome e pouco mais. “Cada meia mesa era uma maca. Havia ainda mulheres deitadas no chão. As casas de banho eram buracos. As mulheres e meninas que iam ter filhos levavam bacia, algodão, uma lâmina e um pano para embrulhar a criança. Ali ninguém dá um ‘ai’ ao dar à luz”, testemunha o voluntário. Não esquece uma cesariana em que ajudou. Uma menina que já estava em trabalho de parto há um dia. “Depois de ver como foi aquela cesariana, de limpar e ficar com o bebé no colo, perguntei agora o que é que eu faço e disseram-me dá-lho a ela que ela já vai embora. São coisas que parecem surreais”, admite.

Foto: DR

“Viemos outras pessoas, nunca mais seremos os mesmos”

Por tudo isto, António Santos não tem dúvidas ao afirmar: “Viemos outras pessoas, nunca mais seremos os mesmos”.

Quando voltou a casa o ‘bichinho’ voltou com ele. “Se antes tinha vontade de fazer alguma coisa, com mais vontade vim”, garante o valonguense. “A minha esposa dizia que eu tinha bichos-carpinteiros e que sossegasse um bocado. Tenho duas filhas e para mim foi muito fácil estar no Uganda, mas para as minhas mulher e filhas não”, confessa.  

Em 2018, ajudou a preparar nova missão que levou uma colega três meses até Moçambique. Mas em 2019 já fez a mala e, durante nove dias, esteve num campo de refugiados na Grécia, algo que também o marcou. “Custou-me mais que o Uganda. Estive num campo de órfãos. Foi muito difícil lá entrar e chocaram-me os maus-tratos a mulheres e meninas”, dá como exemplo.

Quando voltou, o pai faleceu e ele acabou a cuidar do irmão com deficiência, que também morreu, com um tumor no esófago. “Durante meses fui eu que cuidei do meu irmão. Tive de me dedicar de corpo e alma àquele que naquela hora mais precisava de mim”, salienta António Santos.

Foto: DR

Este ano, impedido pela pandemia de ir em nova missão, resolveu pegar nas memórias do Uganda e, traçando um paralelismo com a história do irmão, fazer um livro solidário cujas vendas revertem para apoiar uma menina de Paredes. “Quero mostrar aos outros que, no Uganda, na Tanzânia, no Porto, em Lisboa ou na nossa casa, todos temos a missão de fazer alguma coisa de bem pelo próximo, que pode estar lá longe ou ser o nosso vizinho do lado. Todos podem ajudar”, resume.

O livro chama-se “Em Missão – Diário de um Voluntário”. A meta é ajudar a pequena Ariel, de dois anos, filha de um casal de Sobrado que mora em Paredes. A menina tem encefalopatia epiléptica.

“Que os outros possam ler e ver que ajudar está ao alcance de qualquer um”

Segundo a página que angaria fundos para a criança, “A Ariel precisa da vossa ajuda”, a menina faz medicação para controlar as eventuais crises, que estão “minimamente controladas”. “No entanto, esta doença provoca um grande atraso ao nível do desenvolvimento motor e psíquico, e por isso, para que seja possível eu vir a fazer as coisas básicas que as outras crianças fazem, como falar, sentar, gatinhar, andar… preciso de muita fisioterapia”, lê-se na explicação dos pais, em nome da Ariel.

Foto: DR

Cada sessão de terapia custa 30 euros, sendo necessários 600 euros por mês para que seja possível fazer uma sessão por dia, valores que são elevados e os pais não conseguem suportar. “É só o meu papá a trabalhar e a minha mamã fica a cuidar de mim e acompanha-me nas terapias”, referem.

O livro de António Santos está à venda em alguns locais de Sobrado e também em plataformas como a Wook ou Bertrand. Custa entre os oito e os 9,50 euros. Só as vendas directas de António já permitiram angariar mais de 1000 euros que foram depositados numa conta em nome da Ariel, sendo transferido directamente para a clínica.

“Que os outros possam ler e ver que ajudar está ao alcance de qualquer um”, conclui.  

Foto: DR
Foto: DR
Foto: DR