O autismo não tem que ser um problema ou não deveria ser. Em muitos casos até pode ser a “cura”. Pelo menos é o que depreendemos das palavras de Filipa Silva, vice-presidente da Associação de Pais e Encarregados de Educação da EB 1/JI do Carvalhal, de Ermesinde, Valongo.

Tem uma filha de sete anos com autismo, mas tem tanta informação, devido à procura que tem feito ao longo dos anos sobre esta perturbação, que as palavras e as ideias quase se atropelam quando fala em entrevista ao Verdadeiro Olhar.

Para início de conversa, começa por dizer que pretende, em conjunto com os elementos que fazem parte da associação de pais, angariar verbas para a aquisição de materiais para o Centro de Apoio à Aprendizagem (CAA), a funcionar nesta escola, e que servirá de apoio às 19 crianças que frequentam aquela estrutura, explicou.

Para isso, a associação de pais organizou uma caminhada, marcada para 2 de Abril, precisamente quando se assinala o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. Designada de ‘Caminhada da Inclusão’, tem como objectivo, para já, a aquisição de um quadro interactivo, assim como outro tipo de materiais de “regulação sensorial”, que fazem falta a estas crianças, sendo certo que a “escola faz o melhor possível com o que tem”, faz questão de dizer. A iniciativa conta com o apoio da Junta de Ermesinde e Câmara de Valongo.

Quem passa pelos portões daquele estabelecimento de ensino não imagina o que aquelas salas encerram. Aquela escola, que abraçou crianças com perturbações ao nível do espetro do autismo (PEA), “tem muitas coisas, mas faltam outras tantas para quem ali trabalha e quer dar o melhor a estes meninos”, refere Filipa Silva. Um quadro intercativo custa 2 mil euros, mas a vice-presidente acredita que, com esta iniciativa, esta carência vai ser superada.

Mas faltam também outros materiais como “tendas, onde estas crianças gostam de se “refugiar. Ali será o cantinho delas, onde se podem acalmar e eliminar os estímulos que vêm do exterior”. Também são necessários armários ou um baloiço de tecto. Estes pais também pretendem mandar forrar os sofás que, com o uso, estão demasiado gastos. Pequenas necessidades que, para estes meninos representam o mundo, o seu mundo.

Filipa Silva sabe que “há muitas causas e tantos crianças que precisam de apoios”, mas esta é a sua batalha e quem a ouve percebe que não baixa os braços, sobretudo porque sabe que se forem estimulados “podem ultrapassar muitas das suas dificuldades”, transpor os seus muros.

A força e a vontade em abraçar esta causa advém do facto de vice-presidente da associação saber do que fala. É mãe de Alicia, uma menina de sete anos com espectro de autismo. Consciente de que a união faz a força, e aqui é visível esta harmonia entre pais e o próprio agrupamento, porque todos querem obter recursos “para que, quem ali trabalha possa ensinar” na sua plenitude.

Num país onde se fala tanto de inclusão, era necessário que as escolas estejam preparadas para a concretizar

Neste contexto, não deixa de lamentar que, “num país em que se fala tanta de inclusão, as escolas não estejam preparadas para a concretizar, porque para “ensinarem têm que ter meios para tal”. Por outro lado, quem está do lado de cá das ‘carteiras’ “tem que ter conhecimentos para perceber que nem todos aprendem a mesma forma”, os docentes têm que estar “capacitados para conseguirem dar um apoio diferenciado” a estes alunos, sustenta.

A verdade é que, de uma maneira geral, “os titulares destas turmas não têm formação em ensino especial” e não podemos esquecer que “há situações em que estas crianças podem desestabilizar uma aula e o docente tem que saber como agir”. No caso da EB 1/JI do Carvalhal, todas as turmas têm crianças que precisam de atenção e conhecimentos redobrados, porque apenas “estão em sobrecarga sensorial”, explicou a mãe.

As crianças autistas vivem em sobrecarga emocional, mas com terapias e apoios é possível melhorar comportamentos

Apesar destas dificuldades, Filipa Silva transmite a sua satisfação com a evolução de Alicia. Desde que a menina foi para esta escola de Ermesinde, que é um “exemplo” comparativamente a outros estabelecimentos de ensino, “evoluiu muito”. Além de todo o amor e carinho que quem ali trabalha lhe dá, tem ainda várias actividades suplementares e que contribuem para o seu desenvolvimento e bem-estar. A musicoterapia comportamental é uma delas, até porque um autista têm dificuldade de interação social e é aí que entram os instrumentos e as notas musicais, permitindo-lhes melhorar comportamentos.

É que algumas das dificuldades destas crianças passam pelo contacto visual, o apontar, pedir, sentar, trocar, aceitar o outro, entre outras questões, enumera a mãe. E a propósito lembra que a sua filha, quando entrou para esta escola tinha “selectividade alimentar”, mas foi ali que “começou a comer sopa. Antes não o fazia, escondia-se”.

A equitação terapêutica é outra das actividades que permite a “sociabilização”. Este é um projecto desenvolvido pelo Centro Hípico de Valongo, em parceria com a Câmara Municipal local, e que leva estas crianças a interagirem com os cavalos “uma vez por semana”.

Mas acompanhar uma criança com autismo é um caminho sinuoso. Vivem com uma hipersensibilidade sensorial a barulhos, à luz, ao sabores e ao tacto, ao mesmo tempo que são arrebatadas ao nível das emoções, talvez porque são esmagadas com o que sentem.

“Porque é que não é a sociedade a adaptar-se a estar crianças?”

Filipa Silva aproveita ainda para questionar o facto de “serem elas a terem que se adaptar”. Mas “porque é que não é ao contrário, a sociedade é que deveria “estar preparada para as ajudar a serem adultos melhores”.

Mas no meio de todo este turbilhão, há algo que deixa esta mãe muito satisfeita e é o facto de os colegas da escola de Alicia terem um “espírito de entre-ajuda”, “dão-lhes a mão, acompanham-nas”, algo que “motiva” os pais destas 19 crianças que ali passam a maior parte do seu dia, sendo certo que quem tem espectro de autismo “mão aprende em espelho”, ou seja, não tendem a “imitar os seus pares”. No caso de Alicia, essa questão tem sido minimizada, tem consigo “conviver com outras crianças”, “vai e vem sozinha” e, em determinados momentos, “sabe que tem que estar sentada”.

O nosso dia-a-dia não é como o de outros pais. Saímos da escola com os nossos filhos e vamos para as terapias”

Mas este é um mundo demasiado complexo e Filipa Silva reconhece que ter uma criança autista “é ser mãe de nível difícil, é uma batalha diária”, porque “o nosso dia-a-dia não é como o de outros pais”. “Não existem momentos de descanso” e “somos constantemente desafiados. Saímos da escola com os nossos filhos e não vamos para as actividades normais frequentadas nestas idades, mas para terapias”, contou.

Segundo dados disponibilizados pela Associação de Apoio e Inclusão ao Autista, a AIA, existem cerca de 63300 pessoas com Perturbações do Espectro do Autismo em Portugal. Com o tempo, o diagnóstico é feito cada vez mais cedo, tonando-se evidente que cada pessoa dentro do espectro é única. 

Felizmente, a caminhada de Filipa Silva começou cedo, quando Alicia tinha um ano e meio. Nessa altura, percebeu que algo se passava. A menina “não falava, mas os médicos diziam que cada criança tem o seu tempo, pediam para aguardar”. Aos dois anos, esta mãe começou a “escrever tudo aquilo que a filha não fazia, como “não apontar para os objectos pretendidos, o evitar o cantacto ocular e o não reconhecer o corpo no espelho”. “Como é possível”, questionava. Não desistiu de mostrar a sua lista ao médico de família, que logo a encaminhou para uma consulta de Pediatria do Desenvolvimento, no Hospital de São João.

Apesar de todas estas barreiras, a verdade é que aos três anos, “reconhecia as letras e começou a juntá-las”, apesar de desconhecer o nomes dos objectos”. Era este o seu hiperfoco que, no autismo, acontece quando pessoas no espectro apresentam um interesse, focam-se num determinado assunto. No caso, era a leitura, algo que Alicia mantém até hoje.

Meses depois desta incursão no S. João, veio o diagnóstico. “No início foi um choque, só desejamos que nos mandem para algum lado, queremos fazer qualquer coisa pelos nossos filhos”, mas estes pais encontram apenas um grande vazio. “Ninguém nos diz onde há ajudas ou apoios, onde são feitas as terapias”, entre outras coisas.

“Idealizamos o filho perfeito, mas depois percebemos que o temos, mas de outra maneira”

Numa circunstância como esta, há quem “entre em negação, porque cada um tem a sua forma de processar” os acontecimentos. Não podemos esquecer que os outros pais “não se preocupam se a criança vai ser autónoma, se um dia vai ter um trabalho”. Mas estas dúvidas assolam, diariamente, quem lida com o autismo. Idealizamos o filho perfeito, mas depois percebemos que o temos, mas de outra maneira”.

Em nenhum momento Filipa Silva esmorece, porque sente que a pequena “Alicia vai conseguir, ultrapassar” as barreiras com que, todos os dias, se debate. Sendo certo que, esta mãe, tal como todos os que a rodeiam, “tudo faz para que nada falte à filha e aos 18 meninos que com ela partilham as salas da escola do Carvalhal.

Aos 36 anos, a gerente de um restaurante, que também tem um irmão com a mesma condição da filha, faz tudo para “retribuir” aquilo que a filha lhe dá, porque pensa sempre “nos outros miúdos”, sobretudo aqueles que não têm muitas destas possibilidades e não frequentam uma escola como a de Ermesinde.

Alicia é uma menina com espectro de autismo, mas, acima de tudo, é muitas coisas. Tem uma personalidade, tem família, tem escola, tem amigos, tem uma história e tem, sobretudo, muito amor. Gosta de letras, de palavras. Tem sentimentos que não são claros, por isso tem que aprender a manifestá-los. Mas, para isso, alguém tem que lhe ensinar, gradualmente, a ler para dentro de si, porque tem um cérebro que entra em divergência.

Alicia é uma menina diferente, mas de sorriso fácil. Tem excesso de sentimentos, como todas as mães e pais de outras crianças como ela, assim como a escola do Carvalhal que os abraçou. E a par com a associação de pais, todos querem o melhor para todos os filhos, para todos os alunos. A nós, deste lado, cabe-nos mudar, integrá-los e ajudar.

E essa ajuda pode começar agora, participando nesta ‘caminhada pela inclusão’. As inscrições podem ser feitas através do link https://docs.google.com/…/1FAIpQLSdVMcsJk0TGue…/viewform