Quando tudo acabou

0

 

Os anos do governo de Nero, no início da década de 60 depois de Cristo, somaram desgraça sobre desgraça. Problemas na fronteira do império, o temporal que afundou a esquadra no Adriático, o incêndio devastador na cidade de Roma e, ligado a tudo isto, a contestação popular e as manobras no palácio. Nero reagiu identificando a raiz do problema e pondo a solução em prática.

O problema eram os cristãos. Não que eles tivessem soprado o vento que afundou a esquadra, ou atiçado as labaredas de Roma. O problema era eles existirem. Roma imperial era próspera até os romanos se começarem a converter e, portanto, voltaria à prosperidade anterior quando o cristianismo fosse eliminado da face da Terra.

O aniversário do Imperador, no ano 64, foi escolhido como o dia da redenção. Numa ampla propriedade na margem direita do rio Tibre, englobando a colina Vaticana, organizou-se um festival nunca visto. Competições de cavalos, lutas sangrentas, e vinho, e luxúria, e iguarias à descrição, e tudo sem medida. Finalmente, como momento culminante, a matança de todos os cristãos. Morreram tantos, que foi preciso variar as formas de martírio para não ser uma coisa cansativa. S. Pedro, o primeiro Papa, foi crucificado de cabeça para baixo; muitos arderam como archotes para iluminar um espectáculo nocturno.

Na madrugada do dia seguinte, parecia que o cristianismo tinha acabado na cidade de Roma. Sobraram muito poucos, que sepultaram os mortos e recolheram com especial devoção o cadáver de Pedro.

Pouco ficou da incipiente comunidade cristã. Entre os poucos que sobreviveram àquele dia, bastantes morreram nos dias seguintes e nas semanas seguintes. A Paulo, que escapou à matança por estar na prisão, cortaram a cabeça ainda antes de aquele ano acabar.

Aparentemente, não havia mais nada a acrescentar à história generosa das primeiras conversões cristãs. Tudo tinha acabado.

30 ou 40 anos antes, a surpresa de seguir Jesus, de O ouvir responder às questões mais difíceis, de assistir aos milagres mais incontestáveis e, sobretudo, o deslumbramento perante um horizonte maravilhoso da sua pregação tinham terminado na forma horrorosa de um suplício na Cruz.

Desde então, 30 ou 40 anos tinham passado, em que a primeira geração de cristãos anunciou por todo o mundo a Ressurreição e foi tal a alegria do testemunho e a abundância da graça, que muitos judeus e pagãos se converteram.

Agora, pela segunda vez, tudo tinha acabado. Quase tudo. No rescaldo da festança imperial, quem se lembraria de bons momentos? Que restava do sonho árduo, mas excelente, de tocar Deus, de conviver com Ele?

Não se extinguiu completamente. Subsistiu um ínfimo fio de vida. A Pedro sucedeu Lino, que também foi mártir, e depois Cleto, Clemente, Evaristo, Alexandre, Sisto, Telésforo, Higino… até Francisco. Àqueles primeiros cristãos, despedaçados por causa da superstição e da manha política do Imperador todo-poderoso, sucederam novos cristãos e mais mártires. 250 anos mais tarde, Tertuliano resumia a experiência dos primeiros séculos: «o sangue dos mártires foi semente de cristãos». Nem Tertuliano presumia de compreender este enigma, nem vale a pena tentarmos o esforço: o que aconteceu não foi o prémio da eloquência, nem da inteligência, nem do poderio dos homens. Foi, à letra, o paradoxo evangélico, que continua a deixar o mundo perplexo: «se o grão de trigo não morre, fica infecundo; mas, se morre, dá muito fruto».

Na sexta-feira passada, comemorou-se a solenidade de S. Pedro e S. Paulo, no sábado comemorou-se a multidão de mártires que os acompanharam naquele ano de loucura em que tudo parecia ter acabado; hoje, Domingo, comemoramos a Ressurreição de Cristo e o mistério da Igreja, que consiste em Ele ter sempre a última palavra.