O Senhor de Matosinhos

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Fernando Sena EstevesO Mestre Alexandre Maniés é um conservador-restaurador que conheço desde 2007, ano em que nas aulas de Conservação e Restauro de Bens Patrimoniais orientou os seus estudantes do Instituto das Artes e da Imagem na recuperação de peças do Museu da minha Faculdade de Farmácia. Tive o gosto de passar algumas vezes pelo laboratório onde se fazia aquele trabalho: recordo uma balança que estava desmontada de tal maneira que cheguei a pensar ser impossível voltar a reconstruí-la, mas na verdade o resultado foi um sucesso completo, tal como o que aconteceu de resto com as outras peças.

Pude acompanhar algumas intervenções do Mestre Maniés ao longo destes anos, e a mais notável delas foi sem sombra de dúvida a que levou a cabo no Senhor de Matosinhos. Trata-se de um crucifixo de tamanho natural, esculpido em madeira provavelmente no séc. XIII e talvez o mais antigo que existe em Portugal. A estátua estava muito fragilizada pelo passar dos séculos e não se pouparam cuidados neste trabalho tão delicado, tendo-se recorrido inclusivamente aos raios X e à tomografia axial computadorizada (TAC).

Depois de muitos meses de uma restauração paciente e aturada, o trabalho ficou concluído e foi apresentado com sucesso à Universidade Católica como tese de mestrado. A Câmara Municipal de Matosinhos patrocinou desde o início este trabalho e editou um magnífico livro com base na referida tese de mestrado. Este livro foi apresentado na festa do Senhor de Matosinhos no passado mês de maio numa cerimónia no salão nobre da autarquia e contou com a presença do Presidente da Câmara e do Bispo do Porto que usaram da palavra além, naturalmente, do Mestre Maniés. O livro foi apresentado pelo historiador e arqueólogo Joel Cleto que contou, entre outras coisas, a encantadora lenda subjacente ao crucifixo, a qual se pode ler em http://joelcleto.no.sapo.pt/textos/Comercio/SenhorMatosinhos.htm.

Nicodemos é das personagens mais cativantes do Evangelho: reconheceu que Jesus tinha sido enviado por Deus, tomou a sua defesa no Sinédrio e participou na sua sepultura. Segundo a lenda, Nicodemos talhou uma imagem de Jesus mas lançou-a ao mar, talvez porque tais imagens não eram bem aceites tanto por judeus como pelos primeiros cristãos. Levada pelas correntes, deu à costa na praia do Espinheiro em Matosinhos no dia 3 de maio do ano 124. Estava incompleta pois lhe faltava um braço que Nicodemos esculpiu mais tarde e igualmente lançou ao mar. O crucifixo foi piedosamente recolhido e exposto à devoção popular. Tentou-se colocar um braço para completar a imagem nas por mais tentativas que fizessem não se conseguia fixá-lo no sítio. Tempos depois, uma mulher que recolhia pedaços de madeira na praia para queimar em casa, viu que um deles, ao ser lançado ao fogo uma e outra vez, saltava para fora dele e não ardia. Uma filha surda-muda recuperou a fala para dizer que aquilo era o braço da estátua. E de facto, encaixava-se no seu lugar tão perfeitamente que passado algum tempo já nem se sabia se o braço que tinha faltado era o direito ou o esquerdo.

Para salvaguardar a integridade da imagem, só muito raramente tem saído em procissão. As duas últimas saídas foram em 1944 – grassava a II Grande Guerra – e em 1967 por ocasião do cinquentenário das aparições de Fátima. Certamente que o Bom Jesus de Matosinhos, nome por que também é conhecido, ficará contente se o quiserem associar às comemorações, no próximo ano, do centenário da vinda de Sua Mãe a Fátima em 1917.