Cláudia Fagundes é enfermeira e viveu todas as dificuldades trazidas pela pandemia Covid-19, mas de uma perspectiva diferente. Não pelo lado da morte, mas sobretudo pelo da vida. Exerce funções no Serviço de Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, mas mesmo esse teve de se adaptar.

As grávidas, sobretudo as positivas, exigiram novos cuidados, rotinas e trouxeram desafios. À pergunta “houve medo?”, responde sem dúvidas: “Sim, tive e ainda tenho. Não é o medo de prestar cuidados a utentes Covid-19 positivas, mas sim o medo de me infectar e, principalmente, de infectar aqueles que me são queridos”.

De outra coisa a enfermeira que vive em Paredes também não tem dúvidas, vai haver marcas, para todos. “Acho que nenhum profissional de saúde vai voltar a ser o mesmo depois desta experiência bastante impactante. Todas as pessoas que passaram por uma experiência de internamento neste período conturbado, também ficarão com marcas para a vida”, acredita.

Nunca esteve infectada e já foi vacinada. Diz que a maior dificuldade continua a ser manter-se confortável na prestação de cuidados de enfermagem com o equipamento de protecção individual.

“Uma vez que a nossa região foi o foco inicial da pandemia em Portugal, foi-se instalando um clima de nervosismo e ansiedade”

Paredes foi a terra escolhida pelos pais de Cláudia Fagundes para se instalarem, ainda antes de ela nascer. A mãe era enfermeira e foi transferida para o, na altura, Centro Hospitalar do Vale do Sousa.

Ela seguiu-lhe as pisadas, encarando a Enfermagem como “muito mais do que uma profissão”, mas como “uma arte e um modo de vida. “Há uma frase de Santa Maria Eufrásia que me foi dita uma vez como descrevendo um pouco o que é ser Enfermeiro: ‘fazei em cada instante o que deveis fazer, fazei-o exactamente como deve ser feito’. Esta frase resume o papel fundamental do enfermeiro, que alicerçado num conjunto de conhecimentos, capacidades e habilidades, identifica as necessidades de saúde da pessoa, da população e responde a estas quer actuando de forma autónoma, quer em estreita colaboração com a restante equipa multidisciplinar, independentemente da sua área”, descreve a enfermeira de 41 anos.

Ela licenciou-se na Escola Superior de Enfermagem do Porto, local onde mais tarde fez o curso de especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia. Tem ainda uma pós-graduação em Gestão e Administração de Serviços de Saúde na Porto Business School.

Mal terminou a licenciatura começou a trabalhar no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, no serviço de Obstetrícia e Ginecologia, como enfermeira de cuidados gerais. “Em 2009, já como enfermeira de saúde materna e obstetrícia fui transferida para o Serviço de Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos onde me encontro actualmente”, conta.

Foi com “apreensão” que Cláudia Fagundes e a equipa em que se integra assistiram à evolução da situação pandémica no país, com um crescimento rápido de casos. “Uma vez que a nossa região foi o foco inicial da pandemia em Portugal, foi-se instalando um clima de nervosismo e ansiedade”, reconhece a profissional de saúde.

Isso “também serviu de ‘gatilho’ para que a equipa começasse a planear e delinear estratégias com um objectivo muito bem definido: continuar a responder às necessidades de saúde das nossas utentes mitigando ao máximo o risco de infecção no serviço”, com “trabalho em equipa, cimentado na confiança, parceria, comprometimento e disponibilidade”, descreve a enfermeira. Ainda assim, admite, nunca anteviram o que viriam a vivenciar neste ano.

Havia receio de levar para casa “um convidado indesejado”

“Quer o serviço de urgência, quer a sala de partos, são serviços de grande dinâmica funcional, onde não existem padrões de fluxo quer de utentes quer de trabalho, estando dotados de uma equipa de enfermagem que para além de um elevado conhecimento tem uma elevada capacidade de organização e flexibilidade funcional. Ambos os serviços foram alvo de uma reorganização com o aparecimento de zonas de isolamento e de circuitos de circulação. A maior dificuldade revelou-se no serviço de urgência por ter um espaço físico exíguo”, refere Cláudia Fagundes. “Por outro lado, os horários de trabalho também foram alvo de ajuste, com a organização do horário em espelho nos meses de Março e Abril de 2020, com o reforço do número de elementos por turno, sempre que necessário, e mais recentemente com um reforço permanente deste elemento suplementar nos turnos da manhã e da tarde”, acrescenta, explicando que o embate inicial foi “duro”.

Nos primeiros meses, quando chegava a casa no final de mais turno, havia uma sensação de alívio por mais um dia ultrapassado, mas também o “receio de levar um convidado indesejado”, admite a enfermeira. Por isso, elaboraram “uma espécie de plano de contingência domiciliária”. “À entrada existia uma ‘zona contaminada’ onde ficava tudo o que trazia do hospital, incluindo o vestuário e calçado”, resume. Ainda assim, com algumas alterações de rotinas, como o desfasamento dos horários das refeições e a limitação de manifestações de afecto, Cláudia Fagundes, ao contrário de outros profissionais de saúde, nunca deixou de vir a casa. Ter a família por perto, garante “foi fundamental para manter o equilíbrio psíquico e emocional”.

“A vida de um enfermeiro já obriga, pela sua natureza, a uma gestão particular da logística familiar. O trabalho por turnos exige uma conciliação mais efectiva quando temos filhos. O confinamento obrigou a prestar um apoio de maior proximidade à família, mas não alterou significativamente as minhas rotinas, uma vez que eles já têm autonomia na gestão das suas actividades escolares”, esclarece.

O primeiro parto com uma grávida infectada foi o momento “mais desafiante”

Habituada a assistir de perto a um momento especial e onde a emoção marca presença, a enfermeira conta que a pandemia veio alterar a vivência da gravidez ao impor “um distanciamento físico que veio acentuar os sentimentos de medo e ansiedade”. No serviço houve inúmeras grávidas referenciadas já infectadas ou com suspeita de infecção.

“No primeiro dia em que fiquei destacada como ‘elemento covid ( há um elemento de enfermagem destacado por turno), fui confrontada com a necessidade de prestar cuidados a uma grávida em trabalho de parto que se tornaria na minha primeira experiência de parto Covid-19. Este foi um dos dias mais desafiantes da minha carreira e da minha vida”, assegura Cláudia.

“À entrada na sala, a rotineira apresentação e troca de cumprimentos à grávida foi substituída por uma conversa bem mais complexa. A parturiente estava assustada, cheia de dúvidas e com medo de ficar sozinha. Não era para menos… toda a família estava, em casa, infectada…”, recorda a profissional de saúde.

Cabe ao enfermeiro especialista todos os cuidados de vigilância do bem-estar da mãe, do bebé e de evolução do trabalho de parto, mas também o suporte psicológico. E, em tempos diferentes, passou a ser oferecida à parturiente a oportunidade de realizar videochamadas para a família e marido, assim como, após o nascimento do bebé, para que todos pudessem assistir ao corte do cordão umbilical, à prestação dos primeiros cuidados ao recém-nascido e à amamentação, promovendo, ainda que à distância, a vínculo família/bebé, explica a enfermeira, alegando que esse foi o grande desafio: transformar a ausência em presença e a distância em proximidade.

Na sua opinião, “a comunicação hospital-família demonstrou ser determinante na diminuição dos níveis de ansiedade, uma vez que para além de permitir o acompanhamento da família sobre a evolução do trabalho de parto e do estado de saúde da grávida, permitiu também contactar e dialogar com a profissional que a estava a acompanhar e permitiu ainda à grávida acompanhar a situação familiar e a partilha da experiência que estava a viver”. Houve enfermeiras a fazer reportagens fotográficas, dá como exemplo.

“Estamos todos cansados, mas ao mesmo tempo mais fortes! Espero que a sociedade saiba retribuir o esforço dos profissionais de saúde”

Cláudia Fagundes encara, com normalidade, o facto de estar “na linha da frente”. Mas é mais crítica quando à postura das pessoas. “Sinto que as atitudes pouco responsáveis que ainda observamos na população não podem ser consideradas como forma de reconhecimento pelo nosso trabalho”, salienta.

Um ano de pandemia volvido diz esperar que “o país saiba analisar, com humildade e frieza, o modo como funcionam e estão organizados os nossos serviços de saúde” e que haja reflexão sobre “as falhas que se verificaram” para que se transformem “em oportunidades de melhoria”.

“Estamos todos cansados, mas ao mesmo tempo mais fortes! Espero que a sociedade saiba retribuir o esforço dos profissionais de saúde e que saiba também aproveitar esta força para a adopção de comportamentos responsáveis e para o cumprimento de todas as normas de prevenção de infecção”, apela.

Está também esperançosa de que a vacinação acabe com este problema de saúde pública. “A minha perspectiva para os próximos meses é optimista. Na minha opinião, a evolução positiva dos dados relacionados com o número de novas infecções, internamentos e de óbitos, vai permitir um desconfinamento gradual se efectuado de forma responsável, que aliado à implementação do plano de vacinação e consequente aquisição da tão esperada imunidade de grupo, nos vai proporcionar o retorno à normalidade, ou a uma ‘nova normalidade’”, sentencia a enfermeira.

O certo é que a sua perspectiva mudou. A “pandemia” dos livros de história ganhou outros contornos. Agora é “sinónimo de confinamento, distanciamento e solidão”.