O ano foi o mais difícil da carreira e, numa palavra, diz que ficou marcado pela “resiliência”. “Viver uma pandemia é um autêntico tsunami”, testemunha Filipa Martins, de 28 anos. A natural de Lousada é assistente operacional no Hospital Padre Américo, em Penafiel, exercendo as funções de técnica auxiliar de saúde no serviço de Medicina 1, o primeiro a receber doentes Covid.

Desde o primeiro dia na linha da frente, a jovem não vai esquecer os meses “horríveis” de Outubro e Novembro onde a morte foi presença constante. “Muitas das vezes chegava a casa com um nó na garganta. Tenho olhares, palavras e apertos de mão sentidos que nunca vou esquecer”, relata.

“Esta pandemia, apesar de ainda estar longe do fim, sem dúvida vai deixar marcas a mim e a todos os profissionais de saúde. Foi um ano muito intenso, um ano em que de repente tudo mudou, um ano em que disse muitas vezes esta expressão ‘éramos tao felizes e nem sabíamos’”, conclui a jovem.

Fique com mais um testemunho sobre este primeiro ano de pandemia.

 “As dúvidas eram tantas e o inimigo desconhecido”

O gosto pela área da saúde nasceu na adolescência. Filipa Martins queria ajudar os mais vulneráveis. Não se arrepende. “Ser auxiliar de saúde é uma escolha de careira que exige não só disponibilidade e vocação, mas também uma grande dedicação e amor à profissão”, descreve a jovem de Lousada.

Em 2017, começou a trabalhar no serviço de urgência do Hospital Padre Américo, passando depois a trabalhar no internamento, mais concretamente no serviço de Medicina 1.

Está a lidar com doentes Covid-19 desde 13 de Março. “Este foi o primeiro serviço a receber doentes Covid. Recordo-me perfeitamente do medo, da angústia nos olhares de todos nós”, conta. O serviço foi reformulado e passou a ser chamado de “área vermelha”. “O dia-a-dia no nosso serviço passaria a ser de constante pressão psicológica. Passamos a ver os corredores separados pela linha verde (área limpa) e pela linha vermelha (área contaminada). Foi muito complicado, apesar da formação que nos foi dada inicialmente. As dúvidas eram tantas e o inimigo desconhecido”, resume Filipa Martins.

Primeiro começaram a receber os doentes suspeitos, que aguardavam os resultados do teste, mas rapidamente passaram a ter só positivos. O serviço de Medicina 1 é conhecido agora como “enfermaria avançada”, uma espécie de unidade intermédia onde os doentes fazem oxigénio de alto fluxo e v60 e que está dotada de pressão negativa. É o antes dos cuidados intensivos.

Os doentes também mudaram. “Na primeira vaga, a afluência de doentes Covid era de doentes mais idosos, muitos deles oriundos de lares. Na segunda vaga verificou-se completamente o oposto. Eram doentes onde a faixa etária rondava 50, 60, 70 anos e muitos deles sem patologia associada”, diz a lousadense.

“O medo de me infectar era imenso. E o medo do paciente também era notório”

Filipa não esqueceu o primeiro doente Covid com quem lidou. “O medo de me infectar era imenso, ainda sabíamos tão pouco deste vírus. E o medo do paciente também era notório. Apenas ouvia a nossa voz e via os nossos olhos, parecíamos autênticos ‘astronautas’”, relata.

E os medos continuaram neste que considera o ano mais difícil da carreira até aqui. “Era uma ansiedade tremenda todos os dias quando entrava no serviço e havia um medo enorme de errar depois ao retirar o equipamento de protecção individual. Qualquer falha poderia ser motivo de contaminação. Só quem esteve na linha da frente tem a verdadeira noção desta realidade”, assume.

A esses receios juntava outro, o do cuidado com os pais de 63 e 67 anos com quem vive. “Eram o meu maior receio. Apesar de tentar passar mais tempo no meu quarto no regresso a casa o contacto era inevitável. Numa fase mais crítica cheguei mesmo a andar com máscara em casa, fazia desinfecções com muita frequência, aconselhava-os todos os dias a ter o maior cuidado possível e como deveriam fazer para não serem contaminados. Eles foram, sem dúvida, o meu grande apoio durante todo este ano, fundamentais depois de um dia de trabalho tão cansativo fisicamente e psicologicamente”, testemunha a lousadense.

É que, recorda a técnica auxiliar de saúde, houve muitos meses com sobrecarga de turnos para compensar a ausência de colegas infectados, sendo ainda desgastante trabalhar 12 horas com o equipamento de protecção. “Transpiramos imenso e fisicamente é muito cansativo”.

“Não há palavras para descrever o que vivenciamos, principalmente nestes últimos meses”

A principal dificuldade para Filipa Martins foi assistir ao sofrimento dos doentes. “O que mais pediam era ajuda para voltarem a ver os seus familiares. Há memórias que vão ficar para sempre gravadas, porque, muitas das vezes, apesar do esforço incondicional, era ‘remar contra a maré’”, admite. “Acho que nunca mais seremos os mesmos”, acrescenta.

Falando da união da equipa que a acompanha, a lousadense não esconde que passaram momentos difíceis. “Os doentes não podiam ter visitas e despediam-se dos seus familiares por telefone ou videochamada antes de irem para os cuidados intensivos. Era um sentimento de revolta que sentia a ouvir e a ver o medo que o doente sentia, do que iria acontecer, sentia um nó na garganta a assistir aquilo tudo”, explica. “Não há palavras para descrever o que vivenciamos, principalmente nestes últimos meses. A segunda vaga foi um verdadeiro tsunami. Os meses de Outubro e Novembro foram meses horríveis, onde a morte era uma constante no nosso dia-a-dia. Muitas das vezes chegava a casa depois de um dia de trabalho com um nó na garganta, com o pensamento naquele doente que podia ser meu familiar. Tenho olhares, palavras e apertos de mão sentidos que nunca vou esquecer. Sem dúvida que a Covid marcou a minha vida e a de todos nós profissionais de saúde. Mas trabalhamos todos os dias para ajudar os doentes, minorar o desconforto e salvar vidas. Os doentes não estão sozinhos”, garante.

“Não queremos nada uma quarta vaga. Os profissionais de saúde precisam de ‘respirar’”

Filipa sente que este trabalho tem sido reconhecido pela população e sobretudo pelos doentes e pelas famílias. Há palavras de agradecimento por todo o nosso esforço e dedicação. Ouvi vezes sem conta doentes a dizerem ‘não deve ser fácil estar com esse equipamento todo’, ‘admiro muito o vosso trabalho’, ‘obrigado por tudo o que fizeram por mim’. São expressões que nos enchem o coração”, confessa.

À semelhança de muitos profissionais de saúde já foi vacinada e é na vacina que deposita a esperança do regresso de alguma paz. Ainda assim, continua com receio de ser portadora do vírus e infectar alguém. “O meu maior medo é infectar os ‘meus’”, diz.

Ainda que o fim esteja longe, a jovem de Lousada garante que acredita em dias melhores. “Acho que a população em geral  já entendeu a gravidade deste vírus. Acredito que tenhamos um Verão mais calmo, tudo dependerá de todos nós, da nossa atitude depois do desconfinamento  e também dependerá do avançar da vacinação”, defende. “Não queremos nada uma quarta vaga, já vivemos meses demasiado difíceis. Os profissionais de saúde precisam de ‘respirar’”, apela.