Ana Alexandra Santos tem 38 anos e é de Penafiel. É enfermeira no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa e viveu intensamente a pandemia no último ano, tendo estado infectada com Covid-19. Esteve sempre “na linha da frente”.

Num testemunho emotivo, na primeira pessoa, lembra os momentos menos bons, os de dúvidas, medos, incertezas, mas também de esperança, vividos enquanto enfermeira no serviço Medicina Interna Uf1, uma enfermaria para casos que necessitavam de mais vigilância e que poderiam acabar por precisar de cuidados intensivos.

Uma das situações que a marcou foi a despedida de uma filha a um pai já inconsciente por videochamada. Garante ainda que estão cada vez mais preparados para tratar dos doentes.

A 2 de Março de 2020 foi conhecido o primeiro caso oficial de Covid-19 no país. A partir de hoje publicamos um conjunto de testemunhos sobre este primeiro ano de pandemia.

 

“Na minha juventude tinha o gosto pela área da saúde, mas quando fui admitida na Escola Superior de Enfermagem do São João do Porto, em 2000, não sabia bem o que me esperava. Já quando comecei a exercer a minha profissão, em Outubro de 2004, no serviço de medicina interna do Hospital de Torres Vedras, tive a certeza que estava no caminho certo.

Para ficar mais perto dos meus, em Novembro de 2006 iniciei funções no serviço de medicina interna do Hospital Padre Américo, serviço onde permaneço até ao dia de hoje. Foi neste serviço que adquiri a minha experiência e apreendi a ser enfermeira.

Percebi que podia fazer a diferença junto dos doentes quando aliava os meus conhecimentos técnicos e científicos ao conhecimento de todas as dimensões da pessoa que estava à minha frente. Ser enfermeira permitiu-me crescer como pessoa, dar valor ao que é realmente importante e perceber a finitude de uma vida.

Ser enfermeira no serviço de medicina interna foi apreender a ser resiliente, apreender a prestar cuidados de enfermagem com qualidade em condições adversas. Mas em Março de 2020 surgiu um desafio diferente de todos os outros, o serviço iria receber os doentes infectados com Covid-19.

Era tempo de preparar o serviço para receber estes doentes, mas lá estava o medo de algo pouco conhecido e eram muitas as dúvidas. Como organizar os cuidados de enfermagem? Como gerir os cuidados tendo doentes suspeitos e doentes infectados com Covid-19? Qual o equipamento de protecção mais adequado? Como colocar e retirar o equipamento em segurança?

Tal como em outras instituições, este primeiro momento foi marcado pela escassez de material de protecção especialmente das mascaras FFP2 que eram rigorosamente contabilizadas e guardadas no cofre do serviço e entregue a cada elemento no início do turno. Sendo que não podiam ser trocadas com a periocidade desejada. Mas gradualmente o material de protecção tornou-se mais disponível, embora sempre com uma gestão muito racional para nunca faltar.

Estávamos todos a aprender a lidar com esta situação, a lutar para o medo não nos paralisar. O que eu sabia era que tinha de me proteger, cuidar bem dos meus doentes e não ter medo de voltar a casa. A palavra de ordem era desinfectar as mãos, as superfícies e uso contínuo de máscara. As refeições, que eram um momento de convívio com os colegas, passaram a ser um momento mais solitário pelo receio de contaminar o outro.

O medo era mesmo o sentimento dominante entre todos, particularmente entre os doentes. Recordo aqueles que eram internados com suspeita de infecção por Covid-19 e aguardavam ansiosamente pela chegada do resultado. Lembro-me da angústia de um doente ao saber que era positivo, bem como de toda a sua família. A sua preocupação com a família e o olhar angustiado com que olhava para mim e perguntava “o que me vai acontecer?” Uns dias mais tarde, o estado clinico deste doente agravou-se e foi o primeiro doente infectado com Covid-19 que levei aos cuidados intensivos. Uma viagem curta do piso 7 ao piso 4, mas que pareceu imensa, em que recordo o olhar assustado do doente, das suas mãos geladas e eu, sem saber o que dizer, lá disse: “Vai correr tudo bem…”. Dessa vez acertei. Passados uns dias o doente voltou ao nosso serviço, onde concluiu a sua recuperação e voltou para casa.

As histórias com final feliz são as que sempre me motivaram e eram exemplo de esperança para transmitir àqueles que estavam a passar pela mesma situação, mas nem sempre tudo correu bem.

Nas situações em que a infecção por Covid-19 levou a melhor, nós enfermeiros também tínhamos que estar lá, num papel igualmente importante, promover o conforto da pessoa em fim de vida. Minimizar o sofrimento para a pessoa e família. Foram proporcionadas visitas aos familiares que o desejaram e, quando por diversos motivos não puderam estar presentes, a tecnologia deu uma preciosa ajuda.

Relembro com emoção de um doente com mau prognóstico, em que a filha estava longe e pediu para fazer uma videochamada. Expliquei que o doente já não reagia, mas mesmo assim a filha fez um emocionante discurso em que falava do orgulho em ser sua filha, que era um pai maravilhoso e que sabia que ele tinha lutado com todas as suas forças, mas que podia agora descansar. Sem dúvida que as videochamadas foram uma mais-valia para doentes e famílias. Foram um meio de os aproximar, de diminuir a ansiedade de muitos deles, de perceberem que não estavam abandonados, bem como permitiram proporcionar momentos de profunda alegria. Recordo a alegria de um doente ao ver o seu neto com apenas alguns meses de vida, de o ver fazer carícias no ecrã do telemóvel. No final da videochamada pedi para descansar um pouco, recuperar forças para lanchar ao que me respondeu: “Obrigada enfermeira, mas já estou de barriga cheia”.

Com o evoluir da pandemia na nossa região, a pressão que o nosso Centro Hospitalar sentiu foi imensa, com necessidade de ter mais camas para internar doentes Covid. O meu serviço foi criando mais condições com enfermarias com pressão negativa, algumas unidades com telemonitorização, aquisição de ventiladores não invasivos e aparelhos para oxigenoterapia de alto fluxo. O serviço de medicina interna- ADC1, tinha-se tornado um serviço onde eram alocados doentes mais instáveis, com necessidade de uma vigilância constante. Mais uma vez, fui colocada à prova, não tive tempo para preparação, era preciso fazer e aprender em simultâneo.

Relembro dias de angústia em que os doentes agravavam o seu estado rapidamente e as vagas nos cuidados intensivos não chegavam para todos os que precisavam. A instabilidade e as necessidades dos doentes obrigavam-me a permanecer junto deles muitas horas seguidas.

Nestes meses de maior pressão, muitas situações foram difíceis de suportar, mas muito mais do que o desconforto causado pelo equipamento de protecção, o suor a escorrer pelo corpo e a sede que sentia, foi a frustração de chegar exausta no final do turno e não ter chegado a todos os doentes e prestado os cuidados de enfermagem com a qualidade que os doentes mereciam.

Mas felizmente tinha uma equipa ao meu lado, enfermeiros, assistentes operacionais e médicos, pessoas que viviam as mesmas situações, partilhavam as mesmas angústias e assim fui tentando “arrumar” cada dia de trabalho.

No final de Novembro, sentia-me cansada física e emocionalmente, estava a trabalhar e as dores no corpo eram mais intensas, alguma tosse e a temperatura a subir, soou o alarme e a pior das notícias confirmou-se, estava infectada com Covid-19.

Senti o medo que vi-a há nove meses nos olhos dos meus doentes e a mesma preocupação com a família. Mas felizmente o vírus foi generoso comigo e passado uns dias estava assintomática. Certamente que desse momento menos bom vou recordar para sempre o amor que recebi da minha equipa, amigos e família.

Um ano passou desde o início da pandemia, mantêm-se muitas dúvidas sobre este vírus, mas acredito que estamos mais preparados para tratar estes doentes. Temos de continuar a seguir as recomendações da Direcção-Geral da Saúde e acredito que a vacinação da população é o caminho certo. A minha vez já chegou e com orgulho digo que estou vacinada. Aproveito a oportunidade para apelar a todos que quando chegar a vossa vez não hesitem e vacinem-se.

Somente um país com uma população com saúde consegue prosperar social e economicamente. Neste sentido, vamos valorizar o nosso Sistema Nacional de Saúde e aqueles que diariamente trabalham para a excelência dos cuidados. Esta pandemia veio expor algumas fragilidades do SNS, mas este continua a ser a garantia de uma resposta efectiva às necessidades de cuidados de saúde da nossa população.

Este foi sem dúvida um ano difícil, mas tenho muito a agradecer pois ao contrário de muitos portugueses não perdi o meu emprego, tenho saúde e não perdi familiares para a Covid-19.

Agora é esperar com tranquilidade e com a ajuda de todos, pelo dia em vai ser possível fazer aquele jantar com a toda a equipa e receber e dar aquele abraço que está em falta.

Cuidem-se e fiquem bem”.

Enfermeira Ana Alexandra Santos