Perante as ubíquas referências a Orwell, viro-me para outro clássico que, ao invés de imaginar o futuro, olhou para o presente. Por vezes, não são necessárias distopias para nos ajudar a perceber como chegámos até aqui. A interpretação do que nos rodeia pode ser suficiente.

Perante as ubíquas referências a Orwell, viro-me para outro clássico que, ao invés de imaginar o futuro, interpretou o presente de forma tão clarividente que as suas palavras se mantêm atuais. Mark Twain escreveu sobre os mais diversos temas, não deixando de o fazer, de forma tão acutilante como pertinente, sobre a vida política, relativamente à qual, de resto, teve contacto na primeira pessoa.

Em “Dos factos que concernem à minha recente demissão”, publicado em 1867, Twain encarna na pele de escriturário do Comité de Conquiliologia do Senado, que, farto de não ser tido nem achado nas tomadas de decisão do país, se demite. No texto, o autor satiriza sobre aqueles que outra ocupação não têm, pelo que só lhes resta agarrar o emprego arranjado pelas clientelas:

“(…) conheço funcionários que não conseguem escrever muito bem, mas que com nobreza dão tudo o que sabem em prol do país, e labutam e sofrem por dois mil e quinhentos dólares ao ano. Por vezes aquilo que escrevem tem de voltar a ser escrito por outros funcionários, mas quando um homem deu o seu melhor pelo seu país, poderá um país queixar-se? (…) Quando um representante do Congresso tem um amigo talentoso sem um emprego onde as suas extraordinárias capacidades possam ser aproveitadas, põe-no ao serviço do país, e oferece-lhe um cargo administrativo num qualquer departamento”.[1]

Já em “Coerência”, discurso proferido em 1887, Twain faz uma crítica violenta à fidelidade cega e acéfala aos partidos e às consequências que daí derivam. Ao contrário do tom jocoso do texto transcrito acima, aqui o autor assume um tom sério:

“Esta atroz doutrina de obediência ao partido é perfeita para os políticos mais rasteiros (…) Dá-lhes carta branca para nos impingir candidatos em quem ninguém que se preze alguma vez votaria, isto caso se consiga compreender que a primeira e suprema lealdade a deve cada um à sua consciência, e não a um qualquer partido. Os marionetistas, os que fazem encher os comícios, sabem que não precisam de nomear o homem mais apto para cabeça-de-cartaz, pois têm a certeza de que o partido, sempre obediente, irá votar no que quer que lá esteja (…)”.[2]

Por vezes, não são necessárias distopias para nos ajudar a perceber como chegámos até aqui. A interpretação do presente pode ser suficiente.

[1] M Twain, Um Candidato Idóneo (Antígona, 2017), págs.80-81

[2] M Twain, Um Candidato Idóneo (Antígona, 2017), págs.133-134