«Defender a fé sem levantar a voz»

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Recentemente, as Paulinas lançaram em Lisboa a edição portuguesa do livro de Austen Ivereigh «Como defender a fé sem levantar a voz —Respostas civilizadas a perguntas desafiantes» (original How to Defend the Faith Without Raising Your Voice: Civil Responses to Catholic Hot-Button Issues). O livro é interessante e a edição portuguesa acrescentou-lhe dois capítulos, um dos quais é um contributo valioso para repensar a presença da Igreja no mundo.

A história remonta a Março de 2010, quando se marcou uma visita de Bento XVI à Grã-Bretanha para 16 a 19 de Setembro desse ano. Os cabecilhas do ateísmo responderam com uma campanha feroz. Richard Dawkins and Christopher Hitchens propuseram que, à chegada, o Papa fosse metido na prisão e julgado pelos tribunais britânicos. A imprensa anunciou que a visita custaria 19 milhões de libras, levantando um clamor de escândalo. O Governo não se opunha à visita, mas os burocratas encarregados de a organizar propuseram lançar uma marca de preservativos chamada «Bento XVI», que o Papa incluísse no programa a visita a uma clínica de aborto e casasse dois homossexuais.

Pouco antes, tinha-se realizado um importante debate entre personalidades do ateísmo e uma professora universitária convertida ao catolicismo e um bispo. A sondagem anterior ao debate indicou que metade da audiência apreciava positivamente o papel da Igreja católica e a outra metade considerava-o negativo. O desempenho dos esforçados católicos foi tão mau que, no final, quase toda a audiência estava contra a Igreja.

Foi nesta conjuntura que Austen Ivereigh (porta-voz do anterior Arcebispo de Westminster, Londres) e Jack Valero (porta-voz do Opus Dei no Reino Unido) decidiram formar um grupo de gente nova capaz de intervir nos meios de comunicação social. O novo Arcebispo de Westminster apoiou a ideia e assim surgiu o «Catholic Voices», que catalizou uma verdadeira revolução. O impacto desta nova forma de comunicar transformou, em poucas semanas, a opinião pública do Reino Unido.

Imaginem, por exemplo, que uma pessoa de certa idade acusa a Igreja de ser uma velha rabugenta, insensível ao desejo juvenil de relações pré-matrimoniais; e, do outro lado, um rapaz e uma rapariga jovens explicam como a ternura e o respeito entre os namorados expressam o seu amor, o seu sentido de responsabilidade e os ajudam a amadurecer e a querer-se mais. Todos compreendem que Deus está do lado da generosidade e do amor; e que o ataque à Igreja traduz uma visão carregada de desilusão e egoísmo. A maneira como se comunica faz muita diferença.

O plano inicial da visita era que o Papa Bento XVI se deslocasse num automóvel fechado, para evitar confrontos com a população, mas o panorama mudou naquelas semanas. Mesmo em zonas onde há poucos católicos, como na Escócia, o Papa foi acolhido por multidões entusiásticas. As pessoas concentravam-se nas ruas para saudar a passagem do papamóvel. 70 mil pessoas (muitas não católicas) encheram o Bellahouston Park para a Missa. Nas regiões mais católicas, a recepção foi ainda mais calorosa. Milhões de pessoas seguiam a transmissão em directo, em contínuo, de manhã à noite. As autoridades da Igreja anglicana receberam o Papa efusivamente. Os representantes dos judeus e de outras religiões emocionaram-se. Diante de todos os deputados, na solenidade máxima do Parlamento, com Bento XVI sentado no lugar de proeminência, o «Speaker» declarou que «a presença ali do Pontífice, inconcebível em tempos anteriores, é agora uma coisa completamente natural» e que «a fé não é uma relíquia do passado, incrustada na vida política, mas faz parte do seu tecido»: os deputados aplaudiram longamente. Os quatro dias da visita foram intensíssimos e, no final do dia 19, Bento XVI regressou a Roma despedindo-se de um Reino Unido profundamente mudado, enamorado da sua simpatia quase tímida.

O livro de Austen Ivereigh passa em revista os temas mais controvertidos, propondo para cada um aquele tipo de abordagem construtiva, verdadeira, que inspirou os rapazes e as raparigas do «Catholic Voices». Faltava contudo um tema, afinal de contas o principal: faltava falar de Deus, não apenas dos temas fracturantes relacionados com Deus, mas do próprio Deus. Auten Ivereigh e Jack Valero convidaram Pedro Gil a acrescentar esse tópico e por isso esta edição é ainda mais útil e completa que as anteriores.

A necessidade deste capítulo corresponde ao perigo de nos deixarmos arrastar pelo espírito da polémica, como o Papa Francisco alertou: «com a selecção de conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. (…) Parece assim identificar-se com esses aspectos secundários que, apesar de relevantes, não manifestam por si sós o coração da mensagem de Jesus Cristo». É preciso então «concentrar-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário» (Evangelii gaudium, 34, 35).

Sim, mais atraente e mais necessário. Porém, mais desafiante. Era o capítulo que faltava a este livro: como falar de Deus.

2 Comentários

  1. Muito interessante o artigo do Prof. José Maria André! Falar serenamente é algo que muito se aprecia…

  2. Deixo aqui um comentário guardado desde 2019, em relação ao artigo publicado neste jornal “O Vaticano e as divindades pagãs” de 18 de Novembro de 2019, já que nesse não é possível deixar comentários:

    A propósito da polémica à volta de pachamama, José Maria André descreve a criação, séculos antes, de um museu no Vaticano com arte pagã, porque “foi Deus quem impregnou o universo de beleza”.
    Explica que o museu também causou polémica na época, por haver quem achasse que se poderia tornar num novo templo pagão. E equipara esta atitude à dos que há um ano criticaram o Papa e bispos pela entronização de pachamama, com “teor violentíssimo”, “exaltado” e “agressividade”. Termina referindo que “não nos compete julgar ninguém”.

    Agora as diferenças: um museu é um museu, e uma igreja é um local de culto.
    Numa igreja católica não se prestam actos de adoração senão a Deus, e não se presta veneração senão aos anjos e aos santos. O que passe disso é sacrilégio, blasfémia ou idolatria, conforme as situações.

    Um culto pagão é em si mesmo uma ofensa a Deus, porque presta culto a um deus que não é o verdadeiro. Claro que os pagãos podem fazê-lo sem culpa, por ignorância, desde que respeitem a lei natural (não matar inocentes, etc.), que obriga a humanidade inteira.

    Actos de culto pagãos dentro de igrejas católicas é um sacrilégio, mais ou menos grave para os pagãos que os praticam, mas um pecado gravíssimo para os pastores católicos que os permitiram e até promoveram.
    Um pastor católico abençoar um ídolo é gravíssimo.
    Um pastor católico a organizar um evento nos jardins do Vaticano onde se praticou verdadeira idolatria (com direito a prostração de joelhos e cabeça no chão) é gravíssimo.
    Pior ainda quando muitos dos que praticaram directamente a idolatria tinham conhecimento, ainda que deformado, da religião católica: eram membros das chamadas “comunidades eclesiais de base”, criadas pela teologia da libertação na américa latina. Portanto não podem invocar ignorância do Deus verdadeiro.

    Se séculos atrás as divindades pagãs do museu vaticano fossem colocadas no interior da Igreja de Santa Maria em Traspontina, carregadas aos ombros por srs. bispos, abençoadas pelo Papa, e, em plena Basílica de São Pedro, os srs. bispos entoassem cânticos dedicados a essas divindades, não teriam razão os que temiam o aparecimento de uma “religião sincrética”?

    Portanto sim, admiremos a beleza da borboleta na flor, a cor e a luz, e já agora o coelho de pelo branco, que também participa na “sinfonia cósmica da beleza”.
    E depois, respeitemos o Autor de toda essa beleza, e deixemos os Seus Templos para a Sua adoração e veneração dos santos. As estatuetas são para ficar em museus, se forem belas, ou no fundo do rio, como foi o destino da pachamama.

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