Quando a pandemia chegou, Sara Mota, médica especialista em Anestesiologia, teve, como outros profissionais de saúde, de se adaptar. Passou a exercer actividade nos cuidados intensivos do Hospital Padre Américo, em Penafiel. Não esquece o primeiro doente Covid positivo que teve de entubar, nem o medo de contrair a infecção e transmiti-la à família.

O trabalho tem sido “cansativo”, “fisicamente e psicologicamente”, admite. “Os doentes permanecem muito tempo nos cuidados intensivos e é inevitável não vibrar com os pequenos progressos/pequenas vitórias, assim como esmorecer com as derrotas. Muitas vezes é difícil chegar a casa e desligar do que aconteceu durante o turno”, conta a penafidelense.

Na primeira vaga, houve orgulho “pelo milagre português”, recorda. “Fomos todos muito cumpridores e efectivamente viram-se resultados. Mesmo em termos hospitalares, estávamos a contar com situações mais difíceis. Mas nesta segunda e terceira vagas, após o Verão, foi muito difícil. Os números dispararam. As mortes atingiram números que nunca vimos na vida”, lamenta a jovem médica.

Em muitos casos, a percepção da realidade só veio com a experiência da doença, reconhece: “Acho que a perceção de quem vivenciou em primeira mão, por ela própria ou um familiar ou pessoa próxima, é completamente diferente. Cheguei a ter doentes que me disseram que não acreditavam em nada disto até ficarem infectados, e que assim que tivessem alta iam alterar o seu comportamento. Mas infelizmente, nem todos tiveram/terão uma segunda oportunidade”.

“Na fase inicial, de maior incerteza e de maior medo, a regra foi a solidariedade. O que sobressaiu foi, sobretudo, o espírito de missão”

Sara Jordana Mota tem 33 anos e nasceu em Peroselo, Penafiel. É a segunda de quatro irmãos. Só se lembra de ter interesse pela Medicina no ensino secundário. Mas a mãe, diz, conta-lhe que o sonho existiria desde criança.

Formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e começou a trabalhar em 2012, tendo sido interna do ano comum no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. Seguiu depois para o internato de Anestesiologia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e regressou ao CHTS em 2018. “Não me vejo a fazer outra coisa e gosto em particular da minha especialidade, Anestesiologia”, garante.

Usa a palavra “resiliência” para definir o último ano, marcado pela Covid-19. Pandemia é um termo que, agora, além de associar a doença infecciosa, associa também a “crise económica, isolamento, solidão e saudade”.

“Ninguém antecipou o que viria a ser. Só em Fevereiro/Março começamos a ter verdadeiramente noção da dimensão que iria ter, e, em particular, assustaram muito a comunidade médica os relatos e os vídeos que nos chegavam de Itália”, recorda a médica anestesiologista.

A 14 e 15 de Março veio a primeira grande mudança no serviço. Foi suspensa quase toda a actividade programada do bloco operatório, ficando apenas a funcionar cirurgia oncológica e cirurgia urgente. “O serviço de Anestesiologia (tal como grande parte dos serviços e do hospital) precisou de ser reorganizado. Passamos a estar presentes também na sala de emergência e nos cuidados intensivos. Na fase inicial, de maior incerteza e de maior medo, a regra foi a solidariedade, algo que naturalmente não foi exclusivo dos médicos, mas de todos os restantes profissionais no hospital. O que sobressaiu foi, sobretudo, o espírito de missão”, defende a natural de Penafiel.

Para Sara Mota, o controlo da pandemia na designada “primeira vaga” foi “eficaz” e “a pressão hospitalar menos acentuada”. “Penso que sentimos maiores dificuldades depois, na ‘segunda vaga’, pelo menos no nosso hospital, onde efectivamente as pessoas e estruturas foram levadas ao limite. Mas creio que todos fizeram tudo o que podiam”, descreve.

Mais do que nos infectarmos, tínhamos o medo de consequentemente contagiar alguém da nossa família que viesse a ficar gravemente doente”

Naquele que define como o ano, até agora, mais difícil da carreira, Sara Mota teve que se adaptar. Passou a trabalhar, primeiro, na sala de emergência e a dar apoio nos cuidados intensivos, durante a primeira vaga. Na segunda e na terceira, passou a estar nos cuidados intensivos onde foram abertas mais duas unidades. “Inevitavelmente, eu e vários dos meus colegas anestesistas tivemos de fazer turnos nestas unidades. O trabalho não era completamente desconhecido, faz parte da formação base de um anestesista, a Medicina Intensiva. Mas após o internato, são poucos os que seguem esse caminho. A Anestesia tem a obrigação e capacidade de abordar um doente crítico, algo que conseguíamos fazer com facilidade. A maior dificuldade prendia-se com o facto de serem internamentos prolongados, tendo sido fundamental o apoio interpares e também o dado pelos colegas da Medicina Intensiva, e outros (como Fisiatria e Nutrição) para conseguir dar uma resposta adequada”, explica a profissional de saúde.

“Todo o trabalho hospitalar foi reorganizado para dar resposta a esta pandemia, todos os outros doentes, todos os outros projectos ficaram para segundo plano. Depois da situação mais estabilizada, continuamos a ter doentes covid e uma pressão para darmos resposta às imensas listas de espera…”, salienta.

Os primeiros contactos com doentes Covid ficaram gravados na memória da médica. “Durante a primeira vaga, as entubações dos doentes SARS-CoV-2 positivos ficaram a cargo da Anestesiologia, e lembro-me perfeitamente do primeiro doente Covid positivo que tive de entubar… São doentes que têm particularidades clínicas que implicam a necessidade de sermos rápidos a efectuar o procedimento, pelo que havia essa pressão de cumprir”, resume. A isso somava-se o uso de equipamentos de protecção a que não estavam habituados e que exigiam cuidados redobrados, sobretudo ao despir. “Mais do que nos infectarmos, tínhamos o medo de consequentemente contagiar alguém da nossa família que viesse a ficar gravemente doente por isso. Hoje já estamos mais rotinados e já sabemos que cumprindo todas as normas de segurança e com o equipamento adequado o risco de contágio é muito baixo”, acrescenta a médica Anestesiologista, que acredita que a maior dificuldade que atravessaram foi a da gestão de vagas, principalmente no mês de Novembro, em que houve um pico de infectados na região.

“Já somos um hospital subdimensionado para o número de habitantes que serve, e com a pandemia, esse problema agravou-se”, sustenta. E se, em situações normais, é preciso “alguma ginástica” para dar resposta a tudo, o período da pandemia foi crítico, frisa: “Foram necessárias muitas horas extra e um esforço de todos os profissionais”.

“Sinto, muito falta dos almoços de domingo, da comida da minha mãe e da minha sogra. De ver o meu filho conviver com os primos, mas espero que dias melhores surjam”

Quando a pandemia chegou, e tudo era desconhecido, ela e o marido (também médico) e o filho, isolaram-se da restante família. “Nunca mais voltámos a ter um contacto desprovido de cuidados até hoje. Tínhamos medo de ficarmos infectados e de infectar os membros da nossa família, particularmente os mais idosos. Temos tentado ter uma vida muito regrada em termos sociais. E mesmo no Natal e na passagem de ano fomos muitos restritos e, felizmente, não tivemos ninguém na família mais próxima que ficasse doente”, conta Sara Mota. “Custa muito, principalmente quando temos um filho de dois anos que passou o último ano praticamente connosco e com a minha tia, que é a sua cuidadora. Tenho a perfeita noção que estou a privar os avós e os tios de muitas fases dele, mas é um mal necessário, espero que em breve tudo acabe e que este momento passe a ser uma lembrança menos boa”, explica ainda a médica de Penafiel, reconhecendo que houve colegas que iam esporadicamente a casa, mesmo com crianças pequenas. Ela cortou o contacto presencial com amigos e família. Ficaram as videochamadas, mas não compensam as saudades. “Sinto, muito falta dos almoços de domingo, da comida da minha mãe e da minha sogra. De ver o meu filho conviver com os primos, mas espero que dias melhores surjam…”, idealiza.

Os receios também trouxeram novos cuidados no regresso a casa. Se no início, ao regressar do trabalho, tirava à roupa à entrada da casa e ia logo tomar banho, passando a usar roupa apenas lavável a altas temperaturas, agora Sara limita-se a deixar o casaco e os sapatos à entrada e a desinfectar as mãos. Há coisas que acredita que vão ficar para o futuro. “Os sapatos da rua deixaram de circular dentro de casa e acho que não vamos perder mais esse hábito, assim como o de desinfectar as mãos”, diz.

No trabalho, primeiro houve o medo da falta de equipamento de protecção, colmatado com a ajuda de muitas pessoas do Vale do Sousa, a quem agradece a solidariedade demonstrada. Se no início era complicado vestir tudo, nesta fase é já algo “normal”. Mas os equipamentos de protecção individual (EPI) “são muito quentes e a máscara acaba por ser muito desconfortável, mesmo insuportável, ao fim de algum tempo”.

O receio com o manuseamento também foi diminuindo. “No início tinha muito medo de ficar infectada sempre que despia o EPI ou fazia um procedimento mais invasivo. Agora já não. Estamos rotinados, sabemos que cumprindo as normas o risco é mínimo”, afirma a penafidelense.

O uso do equipamento, mas não só, traz cansaço. “Nesta segunda e terceira vagas estive várias vezes escalada nos cuidados intensivos. E é cansativo, tanto fisicamente, como psicologicamente. Os doentes permanecem muito tempo nos cuidados intensivos, e é inevitável não vibrar com os pequenos progressos/pequenas vitórias, assim como esmorecer com as derrotas. Há alguns nomes que vamos recordando. Muitas vezes, é difícil chegar a casa e desligar do que aconteceu durante o turno.

“Houve, e tem havido, uma efectiva ‘luta’ pela sobrevivência, de manter os negócios, sem colocar as pessoas em risco”

Sara Mota nunca precisou de recorrer a apoio psicológico, porque tem um bom apoio familiar e porque no serviço se mantiveram unidos. “Isso foi essencial. Mas é perfeitamente normal, necessitar de apoio psicológico e não temos que ter vergonha de o pedir. Foram e são tempos difíceis, atípicos e de facto extraordinários. Pouco normal seria achar-se algo de normal no que o ano passado nos trouxe, particularmente nos cuidados de saúde”, sustenta a médica anestesiologista.

Olhando ao ano de pandemia passado, a penafidelense recorda o “milagre português” seguido de duas vagas que puseram todos à prova. “Após o Verão foi muito difícil. Os números dispararam. As mortes atingiram números que nunca vimos na vida”, lamenta. Além disso, salienta, houve “custos sociais e económicos muito elevados” trazidos pelos sucessivos confinamentos. “Tentámos, dentro do possível, manter alguns hábitos de consumo locais, porque assusta a questão da retoma, dos empregos, e da manutenção do sustento das pessoas. Houve, e tem havido, uma efectiva ‘luta’ pela sobrevivência, de manter os negócios, sem colocar as pessoas em risco. Foi e provavelmente será um esforço de grande resiliência”, ressalva.

Nunca esteve infectada e já vacinada vê “uma pequena luz ao fundo do túnel”. “Creio que quando os grupos de risco estiverem vacinados poderemos repensar as estratégias para o futuro com mais ambição e, sobretudo, mais segurança para as pessoas. Ainda assim, acredito que não será súbito, que provavelmente teremos que usar máscara durante algum tempo, sem prejuízo a outras medidas”, testemunha a médica. “Foi de facto extraordinária a velocidade com que se conseguiu que a vacina estivesse pronta e gosto de pensar que talvez tenhamos a um ponto de viragem. Por isso, vamos manter a esperança, mas sobretudo teremos de ser responsáveis para podermos retomar as nossas vidas”, sentencia.