A cidade que cresceu de costas voltadas para o rio

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(por nos parecer pertinente, e para memória futura, transcrevemos, na integra, a nossa dissertação no IV seminário “Paredes, Cultura e Sociedade” que decorreu na escola secundária de Paredes, no passado dia 7 de Maio).

Seria talvez fastidioso, sobretudo para os mais pragmáticos, esperarem este tempo todo para nos ouvirem falar da importância da água para o planeta ou dos rios para o Ambiente.

Tentaremos, por isso, ser o mais objectivos que nos for possível. No fim nos dirão se o conseguimos ou não.

É do conhecimento geral que o rio Sousa nasce em Felgueiras, na freguesia de Friande, e durante mais de 50 quilómetros atravessa os concelhos de Felgueiras, Lousada, Penafiel, Paredes e Gondomar, antes de esvair no rio Douro onde desagua, na freguesia de que tem exactamente o nome do rio e do seu fim. Na Foz do Sousa, no concelho de Gondomar.

Outrora, quer a beleza natural do rio quer o seu aproveitamento económico tiveram, em todo o seu curso, um aproveitamento incomensuravelmente maior se comparado com os dias de hoje.

A primeira questão que se nos colocou ao fazer este trabalho foi exactamente esta: terá acontecido o mesmo aos outros rios? Terá acontecido o mesmo aos outros rios da região?

A resposta, não sendo absoluta, permite-nos afirmar, com larga margem, que, infelizmente, a vida do Sousa (o rio) tem sido mais difícil do que a do Ferreira, Cavalum ou Mesio (também eles rios, curiosamente mais pequenos e afluentes do dito Sousa (o principal da região) e, vá lá saber-se porquê, mais bem tratados. Basta, como exemplo, olhar para o Ferreira, filho maior do Sousa, em cujo leito se deleita.

 O Ferreira, para seu cuidado, já recebeua segunda intervenção milionária (18 milhões de euros). Infelizmente, para o rio, para as populações e para os contribuintes, os resultados desta montanha de notas lançadas para o rio foram isso mesmo: dinheiro que se afogou em cima dos problemas que, inexplicavelmente, subsistem, e, em alguns casos, até se agravaram. Valha-nos a recuperação e revitalização das margens do Ferreira, mas de que lhe servirá ver as margens bonitas enquanto, no seu leito, continuam a flutuar, literalmente, os resíduos sólidos e líquidos donde evaporam odores irrespiráveis?

Mas, não invejando a sorte do Ferreira é do Sousa (ambos rios), é do Sousa-dizíamos- que aqui e agora queremos falar.

Que sorte tem sido a do Sousa?

Onde para a natureza quase virgem dos anos 50,além de tanque público onde tantas mulheres, trabalho árduo, ensaboavam as encardidas peças de roupa que, de seguida colocavam “ a corar” ainda nas margens do rio? Os atributos do rio iam muito além disso. .

Acresce a isto a importância económica do rio. Dezenas de moinhos embelezavam as margens e, como que ripostando ao ditador que dizia que o vinho “alimentava um milhão de portugueses”, os moinhos do Sousa matavam a fome a milhares de vizinhos, desde a nascente à foz. Não inebriava, mas dava força às populações ribeirinhas que ou viviam da farinha que o rio lhes dava ou serviam de alimento nutritivo aos mal alimentados portugueses.

Era um rio de águas límpidas com margens bordadas de um verde luxuriante que, nos anos 60, acolheuno seu leito os jovens mais atrevidos e que já sabiam nadar. Para que se perceba esta expressão deve explicar-se que saber nadar, naquele tempo, não era tão uma capacidade assim tão comum. Quase só quem tinha acesso a piscinas, e nesse tempo eram poucas, quase todas particulares e situadas nos grandes centros. Para os ricos, portanto, ou então, nadavam bem os reguilas da aldeia que, em convívio permanente com o rio, se atreviam a mergulhos do cimo das pedras ou até das árvores cujos ramos “entravam” pelo rio. Para os que só olhavam era um susto!

E era mais do que isto o rio Sousa para a vila de Paredes, que o era nesse tempo. Hoje é cidade- dizem- sem, no entanto, percebermos os benefícios de tamanha nomenclatura. Era nas margens do Sousa, desde a “Ilha dos Amores” até “à piscina do Nazaré” que os “meninos de boas famílias” da vila faziam os seus piqueniques, sobretudo nos fins-de-semana. Só um ou outro se atrevia a dar umas braçadas, o que confirma a convicção de que poucos sabiam nadar. Aliás, nota triste desse tempo, o registo da morte de vários jovens paredenses afogados no rio.Dissemos” filhos de boas famílias”, e queríamos dizer com isso, também, que o rio, então, era sinónimo de exclusiva fauna masculina, no que aos humanos diz respeito.

Na década de 70, também para o rio foi tempo de liberdade. O rio dos rapazes, era o Sousa e os outros, passou a ser partilhado pelas raparigas. Se, por si só, esta abertura das mentalidades tornava o rio ainda mais bonito e atrativo, sobretudo para os adolescentes e jovens, rapazes e raparigas, ávidos de uma natureza própria da idade que se completava por esta outra que o rio gerava. Era no rio que encontravam o espaço de libertação depois de tantos anos de falso puritanismo ou inomináveis bons costumes, tantas vezes fruto do regime então derrotado e outras tantas impostos por crenças religiosas que, sobretudo hoje, nos lembram que “Bem prega Frei Tomás. Olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz”.

Juntemos a isto a ousadia, a mentalidade mais aberta dos novos moradores que, entretanto, chegavam à cidade e nos mostravam que a vida ia para além da simples obediência a costumes ultrapassados desde o tempo em que nasceram. Os “barragistas”, designação dada aos trabalhadores da barragem de Carrapateloque, nessa época se concluía, por cá se instalaram, muitos deles definitivamente, e os bancários, cada vez em maior número, graças à expansão das actividades financeiras. Ambos davam maior colorido à vila, mais vida à terra- como se costumava dizer.

É neste contexto que nos ocorre o nome de uma mulher, toda ela, água e liberdade. Toda ela generosidade e bondade. Tanta que transformou o rio na primeira e maior escola de natação de Paredes. De Paredes e não só. A Dª Helena Passos, mulher de um bancário, não se limitou a usar o rio como uma piscina pessoal. Aceitou fazer de professora e, com ela, toda a geração até aos 20 anos, encontrou no Sousa a possibilidade de desfrutar das águas limpas para aprender a nadar. Mas não aprendeu a nadar só para “não ir ao fundo”, como dizíamos, na altura, quando queríamos dizer, para não nos afogarmos. Quem aprendeu a nadar com a Dª Helena, aprendeu a nadar como aqueles que só víamos nos Jogos Olímpicos. Saber respirar a nadar é uma ferramenta, talvez a mais capacitante, para saber nadar bem. Para não ter medo da água, como era comum ter, na altura. E, com a Dª Helena, só tinha ordem para atravessar o rio a nado quem já soubesse fazer a respiração enquanto nadava. Ainda hoje, os que como nós aprenderam com a Dª Helena fazemos uma “figuraça” nadando ao lado dos que nadam com a cabeça de lado, como se tivessem um torcicolo, só para que a água não lhes entre pelo nariz ou pela boca e eles saiam dali engasgados e enrascados. A escola da Dª Helena foi, portanto, um “luxo” para aquele tempo.

À Dª Helena Passos, ainda hoje plena de juventude amadurecida, de generosidade, bonomia, não ficaria mal liderar uma nova turma de aprendizes. Muito mais capaz disso está a Dª Helena do que o rio que nos serviu de praia. O Sousa, pelo contrário, caminha trôpego e entre margens violadas e/ou abandonadas, tropeça no lodaçal comque, diariamente, a raça humana o inunda e imunda.

É, curiosa e tristemente, na última década do século passado, numa altura em que as preocupações com o meio ambiente se tornaram prementemente universais, que o Sousa acelerou para os tempos que têm sido o seu pior período de vida.

No seu leito, cada vez mais, começa a proliferar o desafeto daqueles que, em nome do crescimento, o engravidaram de lixo literal, se tivermos em conta a quantidade e diversidade de porcaria poluente que tornou o Sousa num doente grave e crónico condenando-o a descuidados continuados que, não existindo uma intervenção humana urgente, se transformará de fonte de vida em leito de morte, até para a  própria fauna e flora que, com esforço, ainda nele sobrevive. 

No Sousa, sobretudo na parte que corre na cidade, já não se pesca e, muito menos, se pratica canoagem em Águas Bravas. Para quem não se lembra, na única vez que Portugal participou nesta modalidade olímpica, o seu representante era de Paredes e apadrinhou várias provas no Sousa. Até o primeiro comentador de Águas Bravas nos Jogos Olímpicos era proveniente da Rádio Terra Verde, que emitia de Paredes. De seu nome Pedro Mendes, futuro vereador da autarquia.

As nossas memórias, o nosso afeto pelo rio permitir-nos-ia dissertar horas a fio sobre a sua importância sobre as nossas vidas. Contudo, tudo, isto se torna insignificante se não nos reposicionarmos e dermos importância ao que verdadeiramente interessa. O rio foi muito importante para nós, mas, sobretudo hoje, importa muito mais o rio do que nós. Ou dito doutra forma: deixar morrer o rio é um crime que não podemos cometer, é um crime com que não podemos pactuar.

E não é só pelo facto de procurarmos a Ilha dos Amores, lugar de consequentes idílios e já não o encontrarmos porque foi desfeito. Desapareceu, para dar lugar a interesses económicos particulares. Exatamente: destruído!

E não é só por já não podermos nadar nele nem nele podermos aprender a nadar.

E, apesar de já não fazermos piqueniques junto ao rio, não os podemos continuar negar aos que nos têm sucedido.

É sobretudo porque o rio Sousa tem sido um parente pobre de todas as nossas ações, quer sejamos dirigentes políticos, fazedores de opinião ou meros, mas responsáveis cidadãos.

É, sobretudo, porque a pesca enquanto desporto de lazer ainda se faz no Sousa, até entrar em Paredes.

É porque as lontras ainda sobrevivem no Sousa, mas a poluída fronteira do percurso do rio que atravessa a cidade as faz voltar para trás.

É sobretudo porque o rio Sousa e toda a sua bacia hidrográfica, toda poluída, merece, no mínimo, a mesma atenção dos seus afluentes.

É sobretudo porque os crimes ambientais representam para nós tanto como devem representar, no mínimo, para quem é responsável pela preservação do meio ambiente, que fizemos questão de tornar pública esta realidade que urge corrigir e que, a cada dia que passa mais se deteriora prejudica a nossa qualidade de vida.

É por tudo isto que, olhando o rio, se assim ainda lhe pudermos chamar, que propomos uma intervenção urgente de quem de direito. Sabemos de quem é a obrigação de legal de o fazer e também não ignoramos nossa a responsabilidade social.

É nosso dever alertar para o permanente e impune desrespeito pela lei que diariamente fere o rio.

É nosso dever denunciar a ocupação abusiva, ilegal e criminosa das margens.

É nossa obrigação exigir a despoluição do rio, a recuperação e revitalização das margens e a recuperação dos moinhos que, em ambas as margens jazem em ruina.

É nossa opinião que, ora numa margem ora na outra, se deve construiruma ecovia que ligue as diferentes freguesias dos concelhos de Paredes e Penafiel, a exemplo do que acontece nas margens do Douro e que tanto beneficiou aquelas áreas e as populações que ali residem ou para ali se deslocam, dando vida ao rio, alimentando a salvaguarda do seu leito e desfrutando do idílio perfeito entre o Homem e a Natureza.

Também a recriação da profissão dos guarda-rios, agora com competências funcionais diferentes, poderiam ser um fator de preservação dos rios.

Que ao pesadelo da cidade que cresce de costas voltadas para o rio se sobreponha o sonho da harmonia plena entre as gentes e o seu rio. É o mínimo que podemos e devemos exigir.