Imbuídos e marcados pelo espírito do fado, os Mendes (Margarida e José Mendes, irmãos, e António Mendes, pai), da freguesia de Casais, concelho de Lousada, são uma das poucas famílias que continua a cantar o Fado de Coimbra e a honrar os fadistas que estão associados a este estilo musical.

São presença constante em eventos do concelho e da região, sendo conhecidos pelo seu timbre de voz, pela solenidade com que interpretam os temas e pela forma como se relacionam com o público.

Apesar de não terem um reportório próprio, as suas actuações integram e revisitam amiúde temas de Augusto Hilário ou Luís Góis, nomes maiores do Fado de Coimbra, que não deixam ninguém indiferente e  cuja influência permanece viva sobretudo em José Mendes, uma presença assídua nas actuações com a irmã Margarida Mendes, e um admirador da voz do pai, António Mendes, já aposentado.

Fado de coimbra é paixão de octogenário

Foi neste contexto, que António Mendes, de 83 anos de idade, o patriarca desta família de fadistas, pai de 12 filhos, 18 netos e 17 bisnetos, nos acolheu na sua residência para uma conversa que teve como pano de fundo o fado, a paixão pelo Fado de Coimbra, os seus intérpretes, assim como o surgimento de novos fadistas na actualidade.

Com a voz presa devido a uma operação que lhe afectou as cordas vocais, o patriarca começou por confessar que é um devoto do Fado de Coimbra, mantém ainda uma relação estreia com esta expressão musical e gosta de revistar alguns dos temas que continuam ainda hoje a fazer a história do fado.

O octogenário assumiu que a influência da família do lado da mãe, conhecida por integrar excelentes guitarristas e ter uma paixão pela música, acabou por lhe influenciar os gostos musicais.

“A família a parte da minha mãe tinha excelentes cantores e guitarristas e isso moldou o meu carácter e o meu gosto pela música. Fiz parte ainda criança do coro de Casais. Casei e continuei ligado ao coro da freguesia, aliás estive no grupo coral durante mais de 70 anos, e fui depois para o Rancho de Nespereira, convidaram-me para cantar. Não gostei da experiência porque não me revia naquilo nem no estilo. Formei mais tarde o grupo Estrelas da Aldeia, um agrupamento de música tradicional, constituído por sete elementos e  rapidamente nos afirmamos no seio musical, dando espectáculos por toda a região. De Coimbra para cá percorríamos todos os concelhos”, disse, salientando que o grupo tinha um reportório próprio e rapidamente ficou conhecido e aclamado pelo público que se revia na forma de tocar e cantar.

“A maior festa que participamos foi em Vila Real. Tivemos lá um espectáculo, o contrato era até às dez horas, tivemos lá até às 3h00 da manhã. Era meia-noite comecei a cantar o fado e a decisão revelou-se acertada porque as pessoas não arredaram pé e estiveram connosco até altas horas da madrugada”, afirmou, acrescentando que a par da música tradicional nunca deixou de cantar o Fado de Coimbra.

Após a passagem por este grupo de música tradicional e com o surgimento de novos estilos musicais, nomeadamente as bandas rock, António Mendes terminou a sua ligação com os Estrelas da Aldeia e formou um grupo de fado com João Teixeira, guitarrista que ainda hoje actua em concertos dos filhos.

“Foi uma aposta ganha. Com o João Teixeira percorremos inúmeros palcos e interpretamos temas de fadistas Augusto Hilário, fadista que imortalizou o Fado de Coimbra. O Fado Hilário era dos temas que mais gostava de cantar. Por outro lado, o facto de ter uma voz diferente da que tenho hoje e o timbre certo faziam esses fados ganhar nova vida. Interpretei, também, fados de Luís Góis, outra figura que está associada ao Fado de Coimbra e outros”, avançou, manifestando que as pessoas sempre o parabenizaram pela forma como cantava.

“Há três anos fui a Nazaré numa excursão. Estava um dia de calor, entrei num bar, estavam lá duas raparigas a cantar o fado, oriundas do Porto. Convidaram-me para cantar e cantei o Fado Hilário e a sala que tinha apenas algumas pessoas e rapidamente encheu-se, com muitos curiosos atentos e a seguir atentamente a minha voz. Foi um momento único”, manifestou, sublinhando que o que distingue o Fado de Coimbra de outros fados, como o Fado de Lisboa, é a forma como é interpretado, estando associado ao sentimento.

“É algo que vem de dentro. Tem de ser cantado com paixão e claro ter bom timbre de voz”, concretizou.

Falando do fado actual, António Mendes confessou-se um admirador de alguns jovens fadistas que começam a despontar cedo para o fado, como António Zambujo, mas, também, várias vozes femininas que são, hoje, uma referência e marcam o fado nacional, noutras vertentes.

“Nasci no Fado de Coimbra e não sei cantar outro estilo”

José Mendes, 58 anos, assumiu, também, ser um apaixonado pelo Fado de Coimbra, pelos seus intérpretes e pelo que este representa na sua essência. A influência do pai, o timbre de voz e o carácter levaram-no a este género musical.

“O meu pai sempre foi uma referência para mim. Tinha uma voz única, um timbre difícil de igualar, o que no Fado de Coimbra faz toda a diferença. Gostei sempre de fado, mas não cantava, tinha vergonha de o fazer. Um dia chegamos, eu, a minha irmã e o meu pai a fazer uma gravação rudimentar, para consumo interno, como se costuma dizer, estava no carro e a minha mãe ouvi aquilo e disse de imediato ‘olha que voz que o pai tem!’. Mas era a minha voz”, avançou, sublinhando que passado esse obstáculo não mais parou de cantar.

José Mendes avançou, também, que a primeira vez que actuou em público foi uma experiência que jamais esquecerá. “A boca secou-me, acho que se me espetassem uma faca nem uma gota de sangue corria, como se costuma dizer, tal o meu nervosismo”, concretizou, confessando que depois dessa primeira experiência não mais deixou de actuar, tendo já percorrido com a irmã inúmeros palcos e inclusive ido a Espanha e actuado em França, a convite da Câmara de Lousada.

Sobre o Fado de Coimbra, José Mendes reconheceu que este é um género muito especial e particular dentro do fado, sendo uma expressão única, que se distingue pela forma de tocar e cantar.

“Nasci no Fado de Coimbra e não sei cantar outro estilo. Há o fado de Lisboa, mas o de Coimbra é único. Tem que ser ouvido em silêncio, é um fado sentimental e não é qualquer um que canta o Fado de Coimbra. O fado para mim é paixão, tem que se gostar, é algo que vem de dentro. Se assim não for, não faz sentido cantá-lo. É um dom que se tem. A voz é algo que não se compra. O fado de Coimbra canta quem sabe”, anuiu, declarando que gostava que a paixão que sente todos os dias contagiasse os seus filhos.

“Tenho um filho que não gosta de fado, mas gosta de me ouvir cantar. Tenho uma neta que já actuou comigo e espero que venha a ser uma grande fadista”, revelou, saudando o facto de em Lousada começarem já a surgir jovens com talento para o fado.

“Canto mais os fados da Amália, é uma musa inspiradora. Revejo-me nos seus temas, na forma como interpretava e dava vida ao fado, como estava em palco e se expressava”

Também Margarida Mendes, de 52 anos, confessa que a música entrou na sua vida muito cedo, tendo o seu pai sido a sua principal influência. “Acompanhava-o para vários sítios, quando ia a eventos. Acho que foi aí que foi crescendo o meu gosto pelo fado. Comecei a cantar com oito anos e tenho participado com o meu irmão em vários concertos”, expressou, sublinhando ser regente do Coro de Casais desde os 18 anos de idade, condição que mantém ainda hoje e que lhe permitiu afinar e trabalhar a sua voz.

Do leque de fadistas que mais admira destacou que a Amália Rodrigues está entre as suas eleitas, sendo uma das maiores divas do fado, que aprendeu a admirar, sendo uma presença e uma influência contínua nos seus fados.

“Canto mais os fados da Amália, é uma musa inspiradora. Revejo-me nos seus temas, na forma como interpretava e dava vida ao fado, como estava em palco e se expressava. Era uma verdadeira fadista que faz parte do cancioneiro e da história do fado, cuja memória e trabalho continua a influenciar muitos fadistas e é fonte de inspiração os as novas gerações”, manifestou.

Além de Amália Rodrigues, a fadista de Lousada confessou ser uma admiradora confessa de Ana Moura, Mariza e Gisela João, três jovens fadistas, com nome já consagrado neste estilo musical, cuja voz, presença no palco e reportório são uma inspiração constante.

“Valem pelo seu timbre de voz, pela forma como agarram os temas e dão vida ao fado. Vi a Gisela João num espectáculo em Lousada e fiquei rendida pela sua voz, pela sua simplicidade e a entrega aos temas”, declarou, adiantando que há cada vez mais jovens fadistas que começam surgir, com talento para o fado e que têm condições para se afirmar no meio.

“É bom para o fado surgirem novos protagonistas porque o fado é património de todos. Antigamente cantar o fado era brega, mas hoje não. Há cada vez mais jovens a despertar para este género musical. Está na moda”, afiançou, confirmando que em Lousada existe já um naipe significativo de bons artistas, com excelentes vozes, que urge continuar a apoiar.

“Temos a Mélanie, o Joaquim Cardoso, a Salomé, nomes de fadistas que são detentores de uma excelente voz e já deram provas do seu talento”, revelou, deixando um repto para que as instituições locais, as associações e também o poder local continuem a apoiar os fadistas do concelho integrando-os na agenda cultural do município.

Além da influência de Amália, Margarida Mendes assumiu, ser também uma apaixonada pelo Fado de Coimbra, tal como o seu pai e o irmão.

“Sempre adorei o Fado de Coimbra, mas não o posso cantar porque este género sempre foi interpretado por homens. Como sou mulher não posso cantá-lo. Faço-o quando estou com o meu irmão ou mesmo com o meu pai,  embora ele agora tenha muitas dificuldades em cantar devido à operação a que foi submetido”, atalhou, afiançando que apesar de não ter temas próprios, não excluiu a possibilidade de editar um CD com o irmão e com um os dois temas do pai.

“Era um tributo que gostávamos de lhe deixar, também pelo fadista que foi e pela influência que sempre teve em nós”, concluiu.