Batista-Pereira-featuredEspantoso. Quando eu pensava que vivíamos num regime democrático eis que somos bombardeados com ferozes argumentos em defesa das tradições como se a tradição fosse um valor supremo. Tal como tinha preconizado num texto anterior (“E agora Portugal?”), escrito em 5 de outubro de 2015, o resultado destas eleições foi o primeiro ato da transformação da nossa democracia. Ao longo dos últimos 40 anos, na aplicação das regras de regime, têm existido práticas que não sendo estatutárias nem constitucionais, são defendidas como Lei suprema. É como se tratasse de usocapião.

  1. Foi tradição que o partido mais votado devia governar. Falta acrescentar que tal só poderia acontecer se tivesse condições parlamentares que o permitissem. Os governos minoritários anteriores tiveram o mérito de o conseguirem. A coligação chefiada por PPC foi incapaz. O erro foi esquecer que as eleições elegem os deputados ao Parlamento e não o governo. O erro foi assumir que a tradição condicionaria o Parlamento. Ainda bem que este erro tradicional foi corrigido pelo Parlamento.
  2. Foi tradição que o primeiro-ministro do governo de Portugal devia ser o líder da formação politica mais votada. Ainda bem que deixou de ser assim. Tal como noutros países europeus, o chefe do governo deve ser a pessoa que melhores condições reúna para criar consensos e estabilidade. A lógica de se começar por auscultar a força politica mais votada, não pode condicionar que esse seja o resultado exclusivo. Isto é democracia. O garante da sua defesa deveria ser o Presidente da República e de todos os portugueses.
  3. Foi tradição que o partido com maior número de deputados no Parlamento é que devia indicar o presidente da Assembleia da República. Esta eu não sabia. Sempre pensei que o Presidente da Assembleia da República, segunda figura do Estado, era eleito por todos os deputados do Parlamento e em voto secreto. Ainda bem que mais este erro tradicional foi corrigido.
  4. Foi tradição que o governo devia ser formado por um dos Partidos do Arco da Governação. Esta é Lei dos mais fortes ou a tradição anquilosada duma ideologia ultrapassada. Ainda bem que acabou o Arco da Governação. No Parlamento todos são iguais e todos podem ser governantes. Ainda não foi possível que o governo de Portugal incluísse todos, ou a maioria, dos partidos com assento na Assembleia da República. Tenho esperança que um dia assim seja, para bem da estabilidade, representatividade e progresso do nosso país.

Dizer que António Costa atuou por sede do poder, é uma falácia. António Costa, com esta corajosa ação de concertação e viragem à esquerda, arrisca o seu futuro, no país e no seu próprio partido. Teria sido mais cómodo manter-se na oposição, à espera da inevitável queda da coligação de direita. Não tenhamos ilusões. Mesmo havendo um grande número de portugueses, com pouca memória, que acreditou na ilusão da campanha de PPC, este era um governo a prazo. Não podemos ignorar a constituição do Parlamento eleito em outubro de 2015. À primeira medida mais impopular, a maioria de esquerda derrubaria o governo. Assim funciona a democracia. Ao fim de 40 anos foi reposta a democracia.