Assinala-se hoje mais um aniversário da Revolução dos Cravos. São 43 anos de reflexões e discursos sobre o tema que deixam pouco de inédito para ser dito, o que não significa que devamos arrumar o assunto. Muito pelo contrário. É que o tempo, tal como acontece no processo de sedimentação das rochas, vai calcificando as palavras, até estas atingirem formas mais ou menos estáveis. Assim foi sucedendo com a palavra “liberdade” associada ao 25 de Abril, a ponto de a generalidade das pessoas considerarem existir uma relação direta, absoluta e inabalável entre o derrube do regime e a liberdade de todos os portugueses.

Por isso, ontem, quando perguntei aos meus alunos se havia restrições à liberdade, não estranhei que me tivessem dito que não, que todos temos liberdade de pensamento e expressão. É isto justamente que me assusta: chegamos a um ponto em que algumas ideias estão de tal forma endurecidas, petrificadas, que não admitem ser questionadas. Foi com espanto que os alunos reagiram à minha opinião de que, muitas vezes, perante as circunstâncias, externas e internas, não somos livres.

Se, como diz Agostinho da Silva, a liberdade só existe quando os nossos atos concordam com todo o nosso pensamento, quantos tiveram já de prescindir da liberdade, arrumando o pensamento lá num cantinho do cérebro? Para manter o emprego, para ascender a um cargo, para comprazer a este ou àquele… Todos nós conhecemos exemplos, sem precisarmos de pensar muito. A independência de espírito, por vezes, tem um preço alto. Mas, felizmente, há quem esteja disposto a pagar por ela. Admiro-os. Admiro a verticalidade de alguns espíritos que não abdicam um milímetro que seja das suas ideias e convicções. Mas às vezes dão-se mal. Mal com os outros, mas em paz com a sua consciência.

A ideia de liberdade é de tal forma encarada como uma conquista definitiva e inquestionável que uma percentagem significativa dos portugueses prescinde do direito de voto, contentando-se com a liberdade de poder dizer meia dúzia de impropérios contra o poder. Isso sim é que é liberdade! Ninguém pode ser preso por isso. Maravilhosa conquista de Abril! Isto se o impropério for dirigido ao governo ou aos deputados, que estão lá em Lisboa, não conhecem o Zé nem o Tónio…

Julgo que não é este tipo de liberdade que nos interessa promover enquanto cidadãos, ainda que um desabafo catártico faça também bem ao espírito. Interessa-nos, sim, construir uma liberdade alicerçada em conhecimento, espírito crítico e princípios morais. Uma liberdade que reconheça que não fui livre nesta ou naquela situação, mesmo estando num país livre!

Se relativamente ao governo central as pessoas não se coíbem de emitir a sua opinião, já em relação ao poder local, as opiniões divergentes são reprimidas. As pessoas receiam tomar posições por sentirem que podem ser consideradas obstáculos à conquista ou manutenção no poder pelas fações políticas, o que pode colidir com os seus próprios interesses. Uma repressão velada mas sempre presente, infelizmente.

Sobre a conquista de liberdade que, apesar dos considerandos, é um marco importante na história do nosso país, não esqueçamos que não é eterna. Olhemos para a História e vejamos as lutas que foram já empreendidas no passado. A Revolução Francesa incendiou a Europa, as lutas liberais sucederam-se, mas o fogo apagou-se… O século XX trouxe-nos novamente a opressão e novas lutas tornaram-se necessárias… Não pensemos que o assunto está agora resolvido!