Miguel Machado, como qualquer profissional de saúde, tenta abstrair-se e não associar as situações aos doentes em concreto. Tenta, mas nem sempre consegue.

Num ano de pandemia, com a morte sempre presente, o enfermeiro na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital Padre Américo, questionado, conta uma só história. A de uma doente que, “em estado critíco e em lágrimas”, prestes a ser ligada ao ventilador, lhe pergunta se vai ficar tudo bem. “O que se pode dizer nesta situação em particular na qual sabemos que as hipóteses de recuperação são diminutas, mas temos de dar uma resposta imediata? Disse-lhe que íamos dar o nosso melhor no sentido de a ajudar. Mas, infelizmente, o nosso melhor não foi suficiente…”, conta.

Numa palavra, Miguel Machado define o último ano como “impiedoso”.

“O esforço foi elevadíssimo, porém estou convicto de que valeu a pena. Vidas foram salvas”

Miguel Machado tem 41 anos e é natural de Vizela, mas reside em Penafiel. Está no Hospital Padre Américo desde 2003. Primeiro passou pelo serviço de Medicina Mulheres e depois foi convidado a integrar a equipa que iria criar a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, onde se mantém até hoje. “Tinha apenas dois anos de carreira profissional e um convite desta dimensão era simplesmente irrecusável”, lembra.

A enfermagem não começou como um sonho, mas antes “uma decisão individual e devidamente ponderada”. Quando chegou a hora da escolha, no 12.º ano, “pesou muito o facto de haver uma amiga da família que era enfermeira, respeitada e com uma humanidade de elogiar”.

Seguiu para a Escola Superior de Enfermagem de Bragança (Instituto Politécnico de Bragança) onde se licenciou em Enfermagem com Especialidade em Enfermagem Médico-Cirúrgica. Fez depois mestrado em Enfermagem da Pessoa em Situação Crítica na Escola Superior de Saúde (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro). Iniciou a actividade profissional no Hospital Sra. da Oliveira – Guimarães no Serviço de Urgência/Observações, em 2001, tendo posteriormente ingressado no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

Olhando para este primeiro ano de vida em pandemia, Miguel Machado conta que os profissionais e serviços de saúde estiveram atentos ao que se via na China e depois em Itália e Espanha. “Reforçámos a equipa, reorganizámos circuitos, efectuamos ajustes na área utilizável do serviço, robustecemos stocks de equipamentos, materiais, fizemos formações internas no sentido de acautelarmos a nossa posição”, recorda. Já anteviam o que o futuro reservava.

Ele foi-se preparando, sabendo que uma situação destas obriga a pesquisar e crescer. “Medo nunca senti. Apreensão e um certo desconforto inicial, garantidamente”, resume o enfermeiro.

“Na área da saúde, e falo com conhecimento de causa muito bem assente na enfermagem, existem profissionais extremamente bem preparados. O espírito de entreajuda está sempre presente. Existiu um trabalho planeado, de reforço atempado das equipas que procurou dar uma resposta adequada às situações. Obviamente, dias houve em que muitas dúvidas e incertezas surgiram. O esforço foi elevadíssimo, porém estou convicto de que valeu a pena. Vidas foram salvas, outras não foi possível, mas a valorização da dignidade humana esteve sempre presente na minha actuação”, acrescenta, referindo que apesar de alguns receios iniciais nunca faltaram equipamentos de protecção.

“Os doentes acreditavam que iam adormecer para mais tarde acordarem minimamente bem. Exaustos, imóveis, mas esperançosos na sobrevivência”

No primeiro doente Covid-19 com o qual lidou houve alguns momentos de “receio, incerteza e medo”. “Recordo-me do seu olhar vazio, distante, como que apenas concentrado na procura de algo que lhe pudesse aliviar o sofrimento”, lembra.

A morte já é algo presente na sua actividade, admite o enfermeiro. “Mas perante os números com os quais somos confrontados nesta altura, creio que nenhum de nós estava preparado”, confessa.

Os doentes estavam sozinhos e apesar de ter havido sempre “uma palavra de apoio, conforto e esperança”, Miguel Machado sabe que há alturas em que isso não foi nem é suficiente. “Sempre que possível, tentámos na medida do viável, uma aproximação entre doente e sua família através de videochamadas ou até uma eventual visita devidamente autorizada”, refere. “Quanto à perspectiva dos doentes, creio ser opinião geral, que acreditavam que iam adormecer para mais tarde acordarem minimamente bem. Exaustos, imóveis, mas esperançosos na sobrevivência”, diz o enfermeiro na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente.

Ele, procura não associar as situações aos doentes em concreto. “Tento pensar de uma forma mais geral. Como profissionais, temos a obrigação estar presentes. Torna-se primordial acompanhar o doente, dedicar parte do nosso tempo no acompanhamento do seu sofrimento, tendo presente também mecanismos que nos permitam abstrair de certa maneira daqueles casos que podem mexer em demasia com a componente nossa psicológica”, sustenta. Mas nem sempre é fácil e há situações que marcam.

Ainda assim diz-se “bem, focado e pragmático”. Mas salienta: “da penosidade do trabalho, não se duvide”. “Muito mais do que gostaria com turnos que parecem infindáveis. Mas, no final do dia, quem mais sofre são aqueles que estão deitados, doentes, adormecidos, dependentes de um ventilador e dos cuidados dos profissionais. Será precisamente aqui, neste ponto fulcral, que todos devem atentar e tomar os comportamentos adequados. Não será por falta de informação. Os recursos na saúde, como em qualquer outra área, são finitos. Claro que conseguimos chegar àquilo que considerávamos o limite e oferecer mais, mas até este esforço tem o seu fim”, alerta.

“Não duvido que a solução terá de passar pela vacinação” mas ainda há “um longo caminho pela frente

Face a este primeiro ano volvido, Miguel Machado não esconde que isto lhe marca a carreira. “Sem qualquer sombra de dúvida. Já tive dias para deixar bem escondidos no fundo da consciência, mas este período, sobretudo pelo sofrimento continuado e prolongado numa imensidão dos doentes, assume um papel de destaque”, diz.

Entre as principais dificuldades destaca “as longas horas de permanência sempre em actividade intensa junto dos doentes críticos”. “Rigor, exigência, concentração durante extensas horas consecutivas acabam por tornar os dias extenuantes”, explica. A isso acrescia o uso dos equipamentos de protecção individual, que se tornavam desconfortáveis após longos períodos de utilização. “As mazelas passaram um desconforto imenso pela sensação de calor e transpiração excessiva, por lesões cutâneas nas mãos, face, pavilhões auriculares, dores musculares sobretudo pelo posicionamento vicioso que se tende a adquirir pela sensação de claustrofobia. Isso numa fase inicial. À medida que vamos ficando familiarizados com os materiais, percebemos formas de os melhor ajustar minimizando todas estas situações”, resume o enfermeiro de Vizela, que garante que, face a todos os procedimentos, era baixa a hipótese de se infectar em serviço.

“A responsabilidade individual assume aqui uma função primordial. Assim sendo, evitei contactos familiares. Reduzi o grupo familiar ao mínimo possível e, quando afirmo isto, digo que reservei os contactos ao núcleo familiar, respectivamente esposa e filho. Mantenho cautelas permanentes nos contactos sociais. Em casa, prima-se pela higienização e ventilação adequada dos espaços, tendo sido idealizados circuitos e comportamentos apropriados caso algum de nós fique infectado”, adianta. Ele nunca o esteve, nem nenhum dos familiares próximos. Ainda assim, mantém-se o receio. “Mantenho uma certa apreensão na possibilidade de contrair uma forma grave da doença”, assume.

Entretanto já completou a vacinação à Covid-19 e diz que tem “boa resposta imunitária” segundo um estudo serológico em que está inserido. “Não duvido que a solução terá de passar pela vacinação, embora, até atingirmos a desejada imunidade de grupo, teremos um longo caminho pela frente. Temos é de saber utilizar os obstáculos e servirmo-nos deles como aprendizagem”, defende Miguel Machado.

“É uma guerra que não se passa nos campos de batalha. Passa-se nas nossas casas”

Olhando à evolução da pandemia no país, o profissional de saúde lembra um início bom a “displicência” da população no final do ano. “É uma guerra que não se passa nos campos de batalha. Passa-se nas nossas casas, nos nossos locais de trabalho, junto dos nossos amigos, nos locais de lazer… cabe a cada um de nós assumir os comportamentos adequados”, frisa.

Depois do susto, admite, os mecanismos de adaptação vão actuando, e “existe um sentimento de normalização que nem sempre é benéfico”.

Miguel Machado garante que sente que ao estar na linha da frente de combate à pandemia faz “a diferença”. “São inúmeros os casos de doentes que, através da nossa actuação, regressam a casa com qualidade de vida e com perspectivas de um futuro desejável”, realça.

Mas não esconde que as marcas são muitas. “Creio que muitos de nós [profissionais de saúde] colocam sérias interrogações a respeito daquilo que realmente fazem e se é o que desejam continuar a fazer no futuro”, assume o enfermeiro.

Apesar de tudo, Miguel Machado diz que 2020 e estes primeiros meses de 2021 também trouxeram novos interesses e novas oportunidades de crescimento pessoal, assim como o cumprimento de metas. “Procuro ser optimista entendendo ser uma oportunidade para nos tornarmos melhores connosco e melhores para com os outros”, conclui.