Há dias, comemoramos o 10 de Junho, que, como (quase) todos sabem, é o Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. Estranhei, no entanto, a ausência de manifestações, palavras de ordem e estátuas pichadas de vermelho. O Largo de Camões parece ser permanecido incólume à onda justiceira que pretende julgar os nossos antepassados com efeitos retroativos.

Mas afinal o que é que Camões tem a ver com o caso? A verdade é que sobre ele pesam acusações gravíssimas de incitamento à violência motivada pela intolerância religiosa. E as provas estão à vista de todos, quando incita D. Sebastião a pôr jugo no “torpe Ismaelita”, combatendo os infiéis. Num estado laico, como o nosso, é motivo suficiente para se decapitar a sua estátua.

Aliás, estou em crer que poucas são as estátuas que ficarão de pé por esse mundo fora, se os julgamentos com efeitos retroativos continuarem. Dos monarcas, poucos escaparão. O primeiro rei de Portugal era um criminoso que, por uns metros de terra, matava mouros sem piedade. O pai da Ínclita Geração, D. João I, era um homicida, que arquitetou um plano para matar o Conde de Andeiro e conseguir o trono. Para não falar do despotismo do D. João V ou de D. José I, pela mão do ministro Marquês de Pombal. As estátuas desta gente, a julgar pela fúria dos manifestantes, qualquer dia tombam.

Tenho a forte convicção de que estes atos não são mais do que um movimento catártico para exorcizar os males de uma sociedade doente que já não vai lá com sensibilização e falinhas mansas. A vandalização do património é um crime que tem de ser punido! Quem não sabe respeitar o passado e aprender com ele jamais será capaz de construir uma sociedade melhor.

O Padre António Vieira, cuja estátua foi vandalizada, talvez por mimetismo ignorante dos acontecimentos registados nos EUA, foi um defensor dos escravos e dos indígenas, mesmo correndo o risco de ser apanhado nas malhas da Inquisição, que tinha muita vontade de lhe pôr as mãos. Vocês que andaram a pichar a estátua deste Homem sabem o que foi a Inquisição? Quantos de vocês teriam coragem de a enfrentar? Agora, todos, claro. Não existe! E no século XVII? Pois é, saber um pouquinho de história e usar a cabeça dava jeito.

O homem é produto do meio e das circunstâncias. Nascer e crescer no séc. XVII implicava possuir uma visão do mundo muito diferente, de aceitação das desigualdades sociais, de subjugação da mulher, de desvalorização do mundo animal… Aqueles que ousaram pensar de forma diferente foram vanguardistas e, se hoje temos uma sociedade mais justa, a eles a devemos. Por isso, independentemente dos aspetos que naturalmente afastam o Padre Vieira da nossa forma de pensar, valorizemos os seus créditos. E os de Camões, D. Afonso Henriques, João I…

Há dias, recebi com satisfação uma mensagem de uma ex-aluna, formada na área das ciências. “Bem dizia a professora que é triste não saber História. E nós a acharmos que era perda de tempo. O que a ignorância faz às pessoas!”, dizia ela. Não encontraria melhor forma de resumir aquilo que está a acontecer em Portugal e no mundo: o que a ignorância faz às pessoas!