“Ele depende de mim. Se calha de eu não poder, que vida será nesta casa?”

Assunção Vieira é cuidadora informal. Ajuda o marido desde que teve um AVC. “Tenho momentos em que sinto-me cansada e com tristeza”, reconhece a mulher de Penafiel

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Assunção Vieira e António Pinheiro são casados há 33 anos. Têm dois filhos já adultos e, agora, já três netos. A vida era estável. Até que uma ‘sigla’ com três letras lhes trocou as voltas. Em 2017, António teve um AVC que lhe paralisou o lado direito do corpo. Seguiram-se meses de tratamentos e de recuperação e, recentemente, revezes, que o voltaram a tornar mais dependente.  

Foi Assunção quem assumiu o papel de o ajudar com tudo. Deixou de fazer limpezas e passou a “cuidadora informal”, sendo que, devido à reforma do marido, nem o apoio/estatuto conseguiu obter.

O papel é difícil e há dias “para tudo”. “A gente precisa de muita força”, admite a mulher, de Penafiel, de 55 anos. Ela própria tem problemas na coluna, desde escoliose a hérnias. “A médica disse que tenho a coluna pior que a de uma pessoa idosa. Só quero ter força para olhar por ele, mas tenho momentos em que sinto-me cansada e com tristeza”, explica. “Às vezes, apetecia-me ir para um sítio onde não visse ninguém e pudesse dar dois gritos e desabafar. Depois passa, e penso que há pessoas pior”, resume Assunção Vieira.

“Só me disse ‘já me chamaram a ambulância e vou para o hospital. Não sei se te volto a ver’”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

António Pinheiro foi sempre saudável. Era ferroviário, manobrador nas estações. “Corria as estações todas de Campanhã ao Pocinho, na linha do Douro. Gostava do que fazia”, relata o homem, agora reformado por invalidez, sentado no sofá da sala, ao lado da mulher. Adorava andar de mota e também fazer passeios de bicicleta com os amigos, percorrendo longos percursos ao domingo.

Até que, em 2017, começou a ter falta de apetite e falta de ar, entre outros. “Eu dizia para ele ir ao médico, mas ele respondia que estava bem”, refere Assunção. “Mas um dia ligou-me, quando ia para o trabalho, e só me disse ‘já me chamaram a ambulância e vou para o hospital. Não sei se te volto a ver’”.

Ela entrou em pânico, pegou no carro e ainda chegou ao hospital primeiro que o marido. Passaram-se horas. “Estivemos lá até às quatro da manhã sem saber de nada”, além de que tinha dado entrada com as tensões elevadas e arritmia, relata. “Mal cheguei a casa estava o médico a ligar, a dizer que ele tinha acabado de ter um AVC e paralisou do lado direito. Deixou de andar e de falar. Estava lá como morto e não conhecia ninguém”, descreve ainda Assunção.

Os sustos prosseguiram nos dias seguintes. “Eu ia todos os dias vê-lo e, um dia, quando lá cheguei, não estava, tinha ido para os cuidados intensivos e chegou a estar em coma induzido”, explica ainda a esposa.

Foram quase dois meses no Hospital de Penafiel e depois mais dois no Hospital de Amarante, em cuidados continuados. “Inicialmente conhecia-nos mas estava muito fraquinho e não conseguia falar. Eu dizia-lhe: tu vais ser forte, vais sair disto e recuperar. E foi no dia em que ele conseguiu dizer ‘olá’ à filha que acreditamos que ia voltar a falar”, recorda.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Dizia-me ‘a minha vida acabou’, e eu ficava triste em ouvir isto”

Fez fisioterapia, entre outros tratamentos, e começou a ficar melhor e com mais forças. “Eu ia todos os dias vê-lo. Mas um dia ligou-me, antes de eu lá chegar, todo emocionado a dizer ‘eu já ando’. Era ele a chorar de um lado e eu a chorar do outro”, conta a penafidelense.

Teve alta. Continuaram as consultas e os tratamentos. Até 2019, “andou lindamente e tinha muita força de vontade”. “Mal se notava que lhe tinha dado alguma coisa”, diz a mulher. “Foi muito esforço para voltar a falar e caminhar. Se andasse como andava nessa altura parecia que não tinha acontecido nada. Já ia para a clínica a pé e sozinho”, acrescenta António.

Veio a pandemia e, apesar de não ter apanhado covid-19, acredita que as vacinas lhe fizeram mal. Piorou. Caminha, embora não se equilibre muito bem, usa ora a muleta ora a bengala para ajudar. Consegue-se vestir sozinho, mas precisa de ajuda para se calçar. “Já conseguiu fazer mais, mas depois andou para trás”, assume Assunção. A acrescer a tudo isto, tem diabetes, toma insulina e já não vê de um dos olhos.  

Aguarda por novas sessões de fisioterapia. Até lá, a mulher vai com ele à piscina, para o ajudar já que não tem muito equilíbrio. Passa noites difíceis, o que é “mau para ele e para quem está a olhar por ele”.

Devido ao AVC, nunca mais pôde conduzir e vendeu a mota que adorava. “Dizia-me ‘a minha vida acabou’, e eu ficava triste em ouvir isto. Mexia muito com o meu estado psicológico. Só pedia que pensasse positivo”, lembra a cuidadora.

“O apoio psicológico nunca fez mal a ninguém. Se pudesse ter um apoio mais frequente era bom”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

 Vivem “um dia de cada vez”. “Ele depende de mim e eu também tenho problemas de coluna, se calha de eu não poder, que vida será nesta casa?”, questiona a mulher. “Depois de lhe dar isto, eu nunca mais tive sossego. As noites nunca mais foram o que eram”, assume. “Mas graças a Deus tenho-o cá. Quando ele esteve no hospital tinha tantas saudades dele. São 33 anos de casamento, teve altos e baixos, mas são mais os altos”, garante, acrescentando que António é “um bom pai e um bom marido”.

Ele reformou-se por invalidez e, com tudo isto, Assunção Vieira deixou o trabalho por completo, na área das limpezas. Ela é cuidadora a tempo inteiro, mas não recebe nada, porque não conseguiu o estatuto de cuidadora informal.

É ela que o leva às consultas regulares, trata dele, olha pela casa… “Desleixo-me um bocado comigo. Dedico-me muito a ele, e aos filhos e netos”, reconhece a mulher. “Mas estou a tentar pensar mais em mim”, salienta.

Para ajudar, participou em sessões de grupo com aulas de riso, pilates, idas à piscina, num programa que conta com o apoio da Câmara de Penafiel. Era um espaço para “ouvir e desabafar”. “Era uma vez por semana e tinha uma psicóloga. Fazia-me muito bem e ajudou muito. Graças a Deus estou mais tranquila, mas se me voltarem a chamar vou”, sustenta a penafidelense.

“O apoio psicológico nunca fez mal a ninguém. Se pudesse ter um apoio mais frequente era bom. Mas sinto que já estive pior”, garante Assunção, explicando que tem nas filhas e nos netos um grande suporte. “Quando estou triste penso neles e falo com eles e já me sinto melhor. E eu tenho a ideia que ele ainda vai recuperar alguma coisa. Só queria que ele tivesse mais equilíbrio e fizesse mais caminhadas”, conclui.

“Apesar de a grande maioria dos cuidadores reconhecerem a necessidade de apoio psicológico, são poucos os que realmente procuram e usufruem deste apoio extra”

Cuidar de alguém (dependente) causa desgaste, físico e emocional, e deixa marcas. Há níveis elevados de sofrimento psicológico, baixos níveis de bem-estar e sintomatologia depressiva e ansiosa em grande parte dos cuidadores informais.

As conclusões são de um inquérito, divulgado recentemente, sobre a saúde mental dos cuidadores informais em Portugal, que revela que mais de 83% já se sentiu em estado de burnout/exaustão emocional. A iniciativa, da Merck, com o apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, que envolveu 1183 pessoas, conclui ainda que 52% dos cuidadores informais sentem falta de apoio psicológico.

“A maioria destes cuidadores vê-se numa situação de vulnerabilidade psicológica, emocional e social. De facto, 63,7% sentem dificuldade em estar à vontade ou descontraídos, 47,7% não são capazes de rir e/ou ver o lado positivo como faziam antes, 45,7% sentem-se muitas vezes ansiosos/contraídos e 37,4% não têm cuidado com o aspecto físico como deviam”, mostram os resultados.

“Apesar de a grande maioria dos cuidadores reconhecerem a necessidade de apoio psicológico, são poucos os que realmente procuram e usufruem deste apoio extra”: 77,9% em algum momento sentiu necessidade de apoio psicológico, 69,7% gostava de ter apoio psicológico profissional, e 42,1%, em algum momento, procurou apoio psicológico.

Quase 79% dos inquiridos reconhece que o estado de saúde mental influencia o desempenho do papel de cuidador informal.

O inquérito traça ainda um retrato dos cuidadores em Portugal. 84,7% são do sexo feminino e a maioria tem entre os 45 e os 64 anos.