Nos últimos 75 anos houve muitas mudanças na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, instituição criada pelo Padre Américo, fundador da Obra de Rua, sobretudo fruto da própria mudança dos tempos. Desde logo no número de rapazes apoiados, que chegou a ser de 200 e hoje é de apenas 30. Os jovens passaram a frequentar a escola fora e houve oficinas que fecharam, mas a matriz mantém-se: “é uma obra dos rapazes, pelos rapazes e para os rapazes”, garante o padre Júlio Pereira, actual responsável da instituição.

Natural de Galegos, Penafiel, Américo Monteiro de Aguiar desde cedo demonstrou uma predilecção especial pelos pobres. “A vida do Pai Américo uma bola de neve que foi sempre crescendo neste entusiasmo de amor pelos pobres”, descreve Júlio Pereira, salientando o “impacto enorme” que o seu legado teve na sociedade.

A partir desta semana damos-lhe a conhecer o que foi e o que é a Casa do Gaiato de Paço de Sousa com várias visões: a de quem dirige a instituição, a dos meninos que se fizeram homens e ainda hoje colaboram com a Casa, a dos rapazes que ainda lhe chamam lar e a do autarca que reconhece “o trabalho extraordinário” realizado pela instituição.

“Vê-se agora uma família mais reduzida. Gostaríamos que fosse maior, mas é como é”

A entrada é imponente e o portão está (quase) sempre aberto. Mas o espaço dentro dos muros da Casa do Gaiato de Paço de Sousa é hoje povoado por poucas crianças e jovens.

“Vê-se agora uma família mais reduzida. Gostaríamos que fosse maior, mas é como é”, descreve o pároco responsável pela instituição há 25 anos. A situação não é só da Casa do Gaiato do Porto, mas transversal às outras existentes no país. “Mas a questão que deu origem às Casas do Gaiato mantém-se, se não em Portugal de uma forma premente, pelo menos pelo mundo fora. Há uma carência enorme perante as crianças”, salienta Júlio Pereira.

Por isso, assume, há “um desejo enorme de chegar a outros que estão mais longe e que não têm as condições para serem crianças e virem a ser homens”. “Estamos em Angola e Moçambique e também nesses países poderíamos estar mais presentes noutras localidades. Temos esperança que isso venha a acontecer”, diz o sacerdote.

Padre Júlio Pereira

Criada para dar apoio aos pobres, a Obra de Rua nasceu pela mão do Padre Américo. A primeira casa, em Miranda do Corvo, data de 1940, mas já antes o penafidelense trabalhava por aqueles que mais precisavam.

“Desde criança que teve sempre uma predilecção especial pelos pobres, uma preocupação em satisfazer as suas necessidades, particularmente de alimentação. Este amor aos pobres, marcou-o desde o início”, explica Júlio Pereira.

Quis ir para o seminário. O pai não concordou por não achar que tinha vocação. Começou a trabalhar no Porto, aos 15 anos, numa loja de ferragens. Aos 18, foi trabalhar para Moçambique, para junto do irmão. A partir daí, conta o actual responsável pela Casa do Gaiato, “fez uma vida do mundo, viajou, trabalhou, sempre no seu estilo próprio, de alguém que gostava de gozar a vida”. Até que, por volta dos 36 anos de idade, “algo se passou dentro dele que resultou numa mudança completa da vida”.

“Deixou tudo o que fazia e cortou com os compromissos profissionais e sem conhecimento de quase ninguém foi para Espanha para um convento de franciscanos”, resume. Esteve lá dois anos, mas acharam que não tinha feitio para estar num convento. Recebeu outra negativa no seminário do Porto, mas acabou por ser aceite em Coimbra onde foi ordenado sacerdote em 1929.

“Chegar àquilo que desejava desde criança constituiu para ele um factor de admiração. Na sua própria assinatura colocava Padre Américo e um ponto de exclamação. Pelo espanto de ter chegado ali depois de tantas voltas que a sua vida deu”, refere Júlio Pereira.

“Já lá vão mais de 60 anos após a sua morte, mas é perfeitamente actual o espírito que ele incutiu na obra e na própria sociedade”

Ainda foi professor no seminário e nomeado para uma paróquia, mas nada disso o movia. O Bispo entregou-lhe então a Sopa dos Pobres de Coimbra. Começou o seu verdadeiro trabalho. “Ele começou a dedicar-se exclusivamente ao serviço dos pobres, a visitá-los nas suas casas, a visitar os presos e a estar com as crianças da rua, particularmente os rapazes”, explica o pároco. Seguiu-se a organização de colónias de férias para estes rapazes, primeiro mais curtas, depois com a duração de um mês e as de Verão. Levava grupos de rapazes para a serra, dando-lhes a oportunidade de terem boa alimentação, ar sadio e tempo para brincar, fora da rua e longe da fome.

Cedo percebeu que esse trabalho era “imperfeito” já que os jovens tinham depois que voltar para as ruas.

Comprou então uma casa, em Miranda do Corvo, onde os rapazes pudessem começar a ter outras condições de estabilidade permanentes e pudessem crescer “em bom ambiente”. “Assim começou a primeira Casa do Gaiato, em 1940, e depois foram 16 anos intensos da sua vida, até 1956, data do seu falecimento, em que expandiu todo o seu amor pelos pobres nas várias vertentes e necessidades que tinham”, sustenta o sacerdote responsável pela Casa do Gaiato.

Além dos rapazes quis ajudar os pobres sem casa. Nasceu o Património dos Pobres, em 1852, gerando-se um movimento por todo o país. “Ainda em vida fizeram-se mais de 3.500 casas, o que continuou ainda com uma pujança ainda maior após a sua morte”, explica Júlio Pereira. Outro legado, para os pobres doentes que não tinham quem os cuidasse, foi o Calvário, criado em Beire, Paredes. “A vida do Pai Américo foi isto. Uma bola de neve que foi sempre crescendo neste entusiasmo de amor pelos pobres”, salienta. “O Pai Américo é a pedra essencial sobre a qual assenta a nossa Obra e é nele que continuamos a ter a figura que é modelo e inspirador para o trabalho do dia-a-dia. Já lá vão mais de 60 anos após a sua morte, mas é perfeitamente actual o espírito que ele incutiu na obra e na própria sociedade”, defende.

75 anos depois Casa continua a ser “do gaiato” e para o gaiato

75 anos depois a Casa do Gaiato continua a ser “do gaiato”, cumprindo os fins para os quais foi criada. “O rapaz encontra aqui a sua própria casa, família e meios para crescer. O nosso lema é ‘obra dos rapazes, pelos rapazes, para rapazes’ e é o que se procura cumprir no dia-a-dia”, garante Júlio Pereira.

Os rapazes não são “uma presença passiva”. Cada um colabora no que pode colaborar. “Obviamente que nem todos fazem as mesmas coisas. Todos eles colaboram, uns com mais responsabilidade e outros com menos, também de acordo com as suas idades, como é evidente. O espírito é de entreajuda, um espírito familiar”, defende o sacerdote.

Quando a Casa do Gaiato nasceu foi concebida de forma a que tudo pudesse ser feito dentro de muros. Havia alojamento, refeitório, escola, enfermaria e várias oficinas para preparar o futuro profissional dos jovens. “Claro que com o andar dos tempos as coisas foram modificando, porque a própria sociedade foi modificando. Antes não existiam escolas nas redondezas, nem hospitais, por isso tínhamos escola e enfermaria com a visita do médico. Não havia cursos profissionais como há hoje e por isso tínhamos oficinas com carpintaria, serralharia, sapataria, alfaiataria, tipografia, a agricultura, actividades que abriam horizontes a cada rapaz”, descreve o padre.

A instituição adaptou-se, “de forma natural”. Os jovens passaram a ir à escola fora, o que alterou as rotinas. “Antes os rapazes estavam cá quase sempre e tinham tempo para dedicar uma parte do dia à escola, uma parte a uma actividade manual nas oficinas, a arranjos na casa e à quinta. Agora estão fora o dia todo, voltam ao fim da tarde. Isso altera completamente a vida da casa”, assume. Houve oficinas que acabaram, como a alfaiataria e a sapataria. Mantiveram-se a serralharia, a carpintaria, a tipografia e a agricultura.

O que também mudou muito foi o número de rapazes, que chegou perto dos 200. “O Pai Américo dizia que uma Casa do Gaiato nunca deveria ter mais de 100 rapazes, mas as necessidades eram tantas que chegou quase ao dobro do que ele achava que devia ser”, diz Júlio Pereira.

“Caminho único” da Segurança Social impede a vinda de mais rapazes

A sociedade, entretanto, evoluiu. Surgiram instituições privadas e do Estado para apoio à juventude que se espalharam pelo país. “Isso fez com que o número de acolhidos na nossa casa diminuísse. Nós que apesar de tudo nunca vivemos de subsídios, mas do nosso trabalho e da colaboração das pessoas”, salienta.

Foram também impostas novas exigências que foram afastando as crianças das Casas do Gaiato.  “Actualmente, o número de rapazes é de cerca de 30. É um número para nós muito baixo porque vivemos numa aldeia com uma série de edifícios que dão condições para que a comunidade seja bastante maior. Pelo menos o dobro poderíamos ter”, argumento o padre Júlio Pereira.

Mas o “caminho único”, apresentado pelo modelo do Estado e da Segurança Social impede que novos jovens sejam ali colocados, lamenta. “Um colégio nada tem a ver com uma casa de família. Nós não queremos ser colégio e não aceitamos esse modelo único e queremos que a nossa pedagogia, a nossa forma de viver se viva realmente. Não queremos ser descaracterizados. Mas porque não aderimos a esse modelo único estamos nesta situação e não nos apresentam pedidos de crianças portuguesas que precisam de ser acolhidas”, sustenta o sacerdote.

“Aqueles que vamos acolhendo são quase sempre estrangeiros, que a esses a mão não é dada suficientemente pelo Estado, e nós damos-lhes a mão. Desde o início que o espírito era acolher os mais desprezados, abandonados e indesejados e são esses que nós actualmente acolhemos”, argumenta.

Museu preserva memórias, mas figura não é esquecida. Processo de beatificação está a decorrer

Mas os responsáveis pela Casa do Gaiato não esmorecem. E tudo têm feito para manter viva a pedagogia do Padre Américo. No ano passado, em Outubro, os 130 anos do nascimento do Pai Américo foram assinalados com a inauguração de um “memorial/museu” sobre a sua vida e a Obra de Rua.

“A casa do Gaiato de Paço de Sousa completou este ano 75 anos de existência e a Obra já vai com 78 anos de existência. Há toda uma série de objectos, documentos e outras coisas que se perdem se não houver o cuidado de as manter conservadas, vivas e expostas para quem está interessado em conhecer o passado para chegar ao presente”, defende Júlio Pereira.

Quem entra no Museu, cuja visita é gratuita mas carece de agendamento prévio, pode ver artigos relacionados com a infância de Américo Monteiro de Aguiar, desde a documentação do seu nascimento até objectos usados por ele, como o berço e uma imagem de Santa Eufrásia que usava para brincar às procissões. Há outra sala dedicada à adolescência e à juventude, outra que retrata a passagem pelo seminário de Coimbra, a ordenação sacerdotal e o início do seu trabalho pelos pobres. Estão também expostos exemplares dos muitos livros que usou para comunicar a Obra, e exemplares do Jornal O Gaiato, que persiste até hoje.

Depois de uma primeira parte mais focada na figura do Pai Américo, existe um outro piso com informação relativa à fundação da Obra e das várias casas, quer em Portugal quer em África. Em exposição há ainda objectos usados, desde a cozinha às oficinas e enfermarias, que mostram como era a vida nessa altura. “Por fim temos outra sala dedicada à fase final da vida do Pai Américo, com objectos que usou, desde livros a objectos religiosos, jornais sobre acidente e a morte nos jornais da época e algumas homenagens feitas depois da morte, que foram imensas”, resume o padre Júlio Pereira. Numa pequena sala de projecção é ainda exibido um filme realizado na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em meados dos anos 40, que retrata a vida na casa.

Mas não seria preciso um museu para manter viva a figura de alguém que ainda está presente, em Penafiel, no país e no estrangeiro. “O Pai Américo marcou a própria sociedade no seu conjunto e operou muitas mudanças. É frequente termos visitas de pessoas que o conheceram e que encontraram no Pai Américo, na Obra e na pedagogia que a própria Casa do Gaiato tinha, soluções para os seus problemas familiares”, afirma o pároco. “O Pai Américo era de facto um santo, as pessoas já o diziam. Ele dizia ‘sou um santo de pau carunchento’”, recorda.

Isso manifestou-se no momento do seu funeral que foi “apoteótico”. “Durante o trajecto do Porto a Paço de Sousa as pessoas estavam no caminho a ver passar o cortejo fúnebre e ajoelhavam-se e rezavam. A sua santidade, a sua forma quase perfeita de ser homem marcou muito a vida das pessoas. Muitos, hoje, quando falam do Padre Américo ainda lhe vêem as lágrimas aos olhos”, explica.

Introduzido em 1986, está ainda a decorrer o seu processo de beatificação. “O Pai Américo sempre viveu para os outros, viveu por causa dos outros e tudo o que fez foi pelos outros e agora continua na mesma, a viver no céu mas por causa de nós”, acredita Júlio Pereira.