Verdadeiro Olhar

Penafiel: Mulher de Urrô completa 100 anos. Segredo para a longevidade é “trabalhar”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

As rugas, bem vincadas, numa cara que ainda se ilumina com o sorriso e as mãos que aprenderam sozinhas os caminhos das rendas, da costura e dos bordados, não denunciam à partida a idade de Glória Alves. Faz hoje 100 anos.

O dia é, por isso, diferente dos outros, e inclui conversas com jornalistas enquanto a pequena “Mimi”, uma gata de rua que acolheu, lhe sobe até ao pescoço e volta a descer para se aninhar no seu regaço.

Apesar dos vários problemas de saúde que já enfrentou, a mulher de Urrô, Penafiel, está lúcida e activa. Continua a fazer rendas e bordados para quem quer e para a igreja. Desce e sobe as escadas da casa que partilha com o irmão (mais novo 15 anos) várias vezes ao dia, amparada numa muleta, e costuma andar a varrer os pátios. Se há segredo para chegar aos 100 anos garante que é só um: trabalhar.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Trabalhei sempre, nunca tive tempo para pensar em coisas ruins”

São 100 anos de uma vida sobretudo feliz e sem grandes arrependimentos. Uma das grandes tristezas foi não ter podido manter-se no convento e fazer votos como freira, devido a um problema de saúde.

Sentada num velho sofá, junto à janela, na sua casa em Urrô, terra que a viu nascer e crescer, Glória Alves fala dos tempos de mocidade como se fossem hoje. Nasceu na madrugada do dia 1 de Julho de 1919, na Casa da Seara. Eram seis irmãos, conta pelos dedos enquanto cita os seus nomes, ela era a segunda mais velha. Por isso, coube-lhe cuidar do mais novo, o Joaquim, que ainda hoje partilha casa com ela. “É mais novo que eu 15 anos. Fui eu que o criei desde pequenino e andei com ele ao colo. Os outros já morreram”, recorda a sénior.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar
Com o irmão, Joaquim | Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Depois fomos para Oleiros e vivemos numa casa de um tio nosso e cuidamos das terras”, relata. Só mais tarde, há mais de 40 anos, construiu a casinha onde vive, num terreno que tinha à face da estrada em Urrô.

“Cheguei a esta idade porque trabalhei sempre. Desde os 14 anos que trabalho para fora”, sustenta a penafidelense. Fazia de tudo, desde casacos compridos, vestidos de comunhão, vestidos de noiva… “Trabalhei sempre, nunca tive tempo para pensar em coisas ruins. Nunca aprendi com ninguém e sempre bordei. É o Espírito Santo que me ensina”, comenta a mulher, garantindo que idealizava pela sua cabeça a maioria das peças e bordados.

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“Tenho feito muitas toalhas para a Igreja, em linho e renda, e fiz muitos quadros bordados para fora”, acrescenta, numa sala rodeada de recordações, muitas delas saídas das suas mãos, desde as toalhas de renda às cortinas.

Um dos quadros tem uma fotografia sua, aos 25 anos, rodeada de um bordado florido. Olha para ela com carinho.

Apoiada na muleta, levanta-se e mostra com orgulho os trabalhos que fez e faz. Continua a fazer rendas, para quem lhe pede, ou muitas vezes só por fazer, com restos de linha que lhe trazem. E a bordar almofadas ou a decorar panos da loiça.

Não tem filhos, mas tem 48 afilhados

Mas nem só da costura se fez a vida da Glorinha. “Fui catequista, cantava no coro e fui zeladora de um altar desde a altura dos bancos da escola. Só deixei de ir lá quando já não podia. Esse altar está na família desde os meus avós. Tenho pena que alguém da família não fique a zelar por ele”, confessa.

Foi sempre caseirinha e pouco saía. “Conheço pouco da freguesia. As minhas irmãs iam às festas, mas eu nunca saía. Preferia ficar em casa e nunca me arrependi”, diz Glória Alves, que representa hoje a típica figura de avó, com cabelo branco amarrado num puxo.

Aos 25 anos chegou a ingressar num convento, na Boavista, no Porto. Esteve lá cerca de sete meses. “Queria ser freira”, garante. Mas um problema de saúde fez com que fosse aconselhada a vir embora. “Se fosse hoje não vinha. Gostava daquilo. Se as raparigas soubessem como é bom o convento os conventos estavam cheios”, acredita a sénior.

Depois esteve para casar. “Tinha muitos pretendentes”, assume. “Um deles uma vez perguntou se eu aceitava amêndoas se mas mandasse. Eu disse que as coisinhas doces eram sempre boas. Éramos muito amigos e quis casar, mas eu não quis. Ele já trabalhava há tanto ano e só tinha 10 contos. Devia ser gastador”, explica.

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Também por volta dessa idade copiou uma blusa bordada que uma conhecida trouxe da ilha da Madeira que se tornou um “best seller”. “Fiz tantas para fora. Vendia-as a 50 escudos na altura. Era muito dinheiro. Todos queriam uma blusa igual. Houve quem pedisse dinheiro emprestado para a mandar fazer”, recorda.

Apesar de ser solteira e sem filhos, Glória Alves compensa as contas com afilhados. Tem 48! “Alguns já faleceram, outros moram aqui por perto. A cada um dei um enxovalzinho e depois dava uma prendinha na Páscoa”, conta. Criou mesmo uma das afilhadas desde os dois anos.

Nunca pensou chegar aos 100 anos, admite. Até porque já teve vários problemas de saúde. Um deles, no fígado, obrigou-a a um internamento de 15 dias, quando tinha cerca de 60 anos. Um cancro de mama também a obrigou a remover um dos seios.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Ainda assim diz que é uma idade bonita, apesar de ter de passar grande parte do tempo sozinha.

Mas se há segredo para ter chegado até aqui é o trabalho, garante. “Trabalhe se não quer morrer”, aconselha Glória Alves.

Para comemorar a vida desta centenária, há festa em família ao final do dia, depois de uma missa.