Verdadeiro Olhar

Os vices da câmara que (de repente) fazem tudo

Há fenómenos astronómicos que só vemos uma vez na vida. E há fenómenos políticos que surgem, com pontualidade suíça, sempre que soam os tambores das autárquicas. Este ano, na nossa região, o eclipse atende pelo nome de «presidente em fim de ciclo». Lousada, Paços de Ferreira, Penafiel e Valongo despedem-se dos seus presidentes – presos à limitação de mandatos – e, subitamente, descobrem que os verdadeiros obreiros de todas as grandes obras eram… os vice-presidentes.

E o que mais dói, ironicamente, é assistir ao mesmo “milagre” repetir-se de concelho em concelho, como se fosse a programação automática de um carrilhão político.

Em Lousada, ainda se tenta manter um certo recato. É verdade que Nelson Oliveira aparece mais, mas não tropeça nos limites do decoro institucional.

Saltamos para Paços de Ferreira e encontramos um número mais vistoso. Durante meses, Humberto Brito foi-se apagando suavemente, até desaparecer do cartaz, enquanto o vice Paulo Ferreira surgia a ocupar todo o espaço mediático: corta fitas de manhã, manda comunicados à tarde, inaugura rotundas ao serão. Para acentuar, Humberto Brito aceitou o cargo de deputado, oferecendo palco livre ao sucessor, como quem diz: “toma lá as chaves do município que eu vou ali a Lisboa e venho já”.

Em Penafiel, a metamorfose acontece em modo turbo. Pedro Cepeda, vereador que até ontem se ocupava de dossiers específicos, ganhou repentinamente vocação universal: discursa sobre educação, saúde, cultura, saneamento, trânsito e, se for preciso, declama poesia nos intervalos. Tudo regado por postagens nas redes oficiais da câmara, para que nenhum munícipe fique sem perceber a quem deve agradecer por cada flor plantada.

E, por fim, Valongo, onde a presidência se transformou num serviço de “car-sharing”. José Manuel Ribeiro prepara malas para a Maia, mas mantém o cartão de presidente ativo – sabe Deus porquê. Resultado: o vice Paulo Esteves Ferreira assume o rosto do município em todos os eventos, enquanto o chefe ausente surge em intervalos estratégicos para lembrar que ainda é ele quem assina. Uma espécie de casal político em guarda partilhada: tu vais às festas, eu fico com o título.

Quatro concelhos, o mesmo enredo: vices que, durante anos, viviam na sombra e que agora, por coincidência cósmica, se revelam salvadores únicos da pátria local – tudo embalado com recursos pagos por quem assiste da bancada. E dói ver que, nesta peça repetida, a tal “igualdade de oportunidades” não passa de ficção barata.

Ironia à parte, o problema é sério.

A lei não proíbe entusiasmos tardios. Porém, quando canais institucionais, equipas de comunicação municipais e recursos públicos se transformam, ainda que subtilmente, em máquinas de promoção pessoal, deixa de ser mera elasticidade do marketing político; passa a ser competição desigual.

Em teoria, todos os candidatos deviam correr em pista limpa. Na prática, quem detém a máquina camarária leva um sprinter no bolso: mais visibilidade, mais agenda, mais palco – tudo pago pelos mesmos cidadãos que deveriam assistir a um debate equilibrado de ideias. O resultado é simples: oposição em desvantagem, democracia amputada.

Valorizar experiência governativa é legítimo; aproveitar-se dos meios públicos para fazer campanha confunde papéis e distorce escolhas. O eleitor merece distinguir obra real de espetáculo de última hora, merece saber quem é quem, sem bastidores financiados pelo erário público.

Por isso, da próxima vez que vir um vice-presidente inaugurar até o bebedouro do parque canino, lembre-se: não é súbita vocação de serviço público – é apenas meteorologia eleitoral. Cabe-nos, enquanto cidadãos, pôr um travão a isto, exigindo regras claras, escrutínio apertado e, sobretudo, respeito igualitário pelo voto de todos. É o mínimo que a democracia nos deve… e que nós devemos à democracia.