Dinis chegou mais cedo do que o previsto. Depois de um internamento prolongado, veio para casa, não apenas acompanhado pelos pais, mas por uma sonda que o alimentava e um ventilador. Aí surgiram alguns sinais de que algo de errado se passava, porque o bebé tinha dificuldades de movimento e de postura (hipotonia muscular). O diagnóstico chegou aos oito meses e as palavras “síndrome de Prader-Willi” pareciam uma bomba, com estilhaços de medo e desconhecimento. Tal como este casal, a maioria das pessoas não sabe o que esta doença representa.
Naquele dia, sentados no consultório e ao ouvirem a médica a relatar ao pormenor o que tinha o filho, “caiu-nos tudo em cima”, recorda a mãe, Carla Dias Pinto, ao VERDADEIRO OLHAR.
Há crianças que com oito ou nove anos podem chegar aos 100 quilos
A síndrome de Prader-Willie é uma falha genética no cromossoma 15 que afeta o hipotálamo do bebé, ainda na gravidez, e o principal sintoma é a compulsão alimentar que, em casos severos, pode até levar a comportamentos violentos. Esta síndrome afeta cerca de 60 pessoas em Portugal, no mundo há à volta de 400 mil. Há casos de crianças que com oito ou nove anos podem ultrapassar os 100 quilos. Também pode levar a um atraso global no desenvolvimento psicomotor, a estatura baixa e extremidades corporais pequenas (mãos e pés), entre outros sintomas.
O casal tem outra filha, a Sofia, com 11 anos. Esta mãe e o marido são de Paços de Ferreira, mas, em breve, a família vai mudar-se para Lousada, concelho onde o Dinis já frequenta a Escola de Sousela.
Durante a entrevista, as palavras de Carla vão-se atropelando, tanto é a vontade de explicar o que é esta síndrome e o quanto a sociedade pode ser nociva para estas pessoas, sobretudo as crianças, porque “vivemos num mundo muito consumista e para quem tem uma compulsão alimentar permanente é muito complicado de gerir”.
E se pensarmos bem nisso, a verdade é que o mundo parece um frigorifico a abarrotar, com as portas sempre abertas. Ora para quem vive todos os segundos com fome, “é um grande problema”, conta Carla que lamenta ainda que “a oferta de alimentos, na maioria dos casos, não seja nada saudável”.
Portugal é um país onde 40% das crianças têm excesso de peso e sabemos que a maioria dos avós, por exemplo, têm sempre um bolinho para os seus netos, porque acreditam que dar-lhes “um bom lanchinho” é uma prova de amor.
Carla escreveu o livro “Tenho Fome”. Venda reverte integralmente para a Associação SPW (Síndrome de Prader-Willi) Portugal
Mas não é! Que o diga Carla que tem a perfeita noção que “é muito complicado saber dizer não a uma criança que está sempre com fome”. Por isso, e para ajudar a alertar as pessoas, lançou o livro “Tenho Fome”, a par com Associação Síndrome Prader-Willi (SPW) Portugal, uma estrutura formada por familiares e amigos que acreditam no sucesso das pessoas com este problema e que luta pela sua proteção, assistência, educação e integração social”.
“É preciso explicar que estas crianças ou adultos comem, mas o seu cérebro não associa que já o fizeram e, como tal, querem sempre repetir”. E é isso que Carla Dias Pinto conta e ilustra nesta publicação, dirigida a todos, e que vai ser apresentada este sábado, dia 24, às 16h00, na Biblioteca Municipal de Lousada. O valor arrecadado com a venda do livro reverterá integralmente para a Associação. O objetivo visa apoiar a missão de divulgação e suporte a esta causa.
Esta família afasta-se de convívios familiares e até dos amigos, Porque “ninguém tem que viver as nossas dores”
Um outro problema associado a esta síndrome é a irritabilidade ou, em alguns casos, a agressividade, porque como estão sempre com fome e lhes é vedado o acesso à comida, “podem até tornar-se violentos”.
Diariamente Carla depara-se com inúmeros problemas que, quem tem uma vida sem estas restrições, não consegue imaginar. Por exemplo, “as festas de aniversário, tão comuns nestas idades, as ceias de natal ou os encontros familiares são eventos a evitar, porque as mesas estão sempre recheadas de doces e de todo o tipo de alimentos”. E porque não querem que as pessoas que os rodeiam deixem de comer acabam por se “isolar”. Afastam-se dos amigos e da família. “Ninguém tem que viver as nossas dores”, considera Carla.
Também uma ida ao parque infantil tem que ser bem programada, porque “não podemos ir à hora do lanche, já que há sempre crianças que estão a comer”, algo que estimula ainda mais este menino, havendo ainda a tentação de quem não o conhece de lhe dar alguma coisa.
Por casa as dinâmicas também são algo complexas, “há que esconder tudo. Não há alimentos acessíveis e até uma simples fruteira não pode estar ao alcance do olhar de Dinis” que, e como tem apenas quatro anos, “tem muito pouca noção ou consciência” de como pode ou deve viver esta vida diferente.
Ate agora Dinis só conhece os alimentos saudáveis, porque tanto em casa como na escola “há muito controlo”. Aliás, na Escola de Sousela tem uma auxiliar de ação educativa que o acompanha, colocada lá pela Câmara Municipal de Lousada, e todos “são espetaculares e cuidam muito bem dele”, sublinha Carla que sabe que quando o filho começar a frequentar o 2º ciclo “vai ser bem diferente, porque não será vigiado e todos sabemos que as crianças levam para as escolas lanches nada saudáveis”.
Nos dias que correm e com todas as campanhas feitas em prol da alimentação saudável, meter um sumo e um bolinho na lancheira é algo que os pais fazem. E o ritmo frenético das suas vidas não pode justificar estas opções, porque têm que se convencer que a saúde dos filhos está em causa. Mas isso não acontece e acabam por anuir aos pedidos das crianças, para não comprarem birras. Só que a fatura vem mais tarde, com desequilíbrios metabólicos, obesidade, diabetes, entre outros problemas.
Carla sabe que, no imediato, um lanche “pode ser perigoso para o Dinis”, mas também para todas as crianças, a médio ou longo prazo, porque se vive num quadro de excesso de sedentarismo infantil e onde os Bollycaos se sobrepõem às sandes.
Esta mãe, que é educadora de infância, deixou de trabalhar para poder estar com o filho que frequenta a escola de manhã, mas vai para casa durante a tarde. Carla faz todos os possíveis para que o menino “faça uma sesta” diária, porque, e como diz o velho ditado, “dormir é meio sustento”.
No dia a dia, a alimentação desta criança é feita à base de legumes. Dinis gosta de ter o prato bem cheio e “mais de 50 por cento do que lhe damos às refeições são legumes” que ele devora num ápice, porque no mundo do Prader-Willi todos são sôfregos e “insensíveis à dor. Por muito que comam nunca lhes dói a barriga”, relata a autora do “Tenho Fome”, ao VERDADEIRO OLHAR.
Enquanto o Dinis está ocupado ou a brincar não pensa na comida
Apesar de todos estes limites Dinis é “o menino mais doce e meigo do mundo”. Adora brincar e os pais, assim como a irmã, fazem de tudo para o acompanhar em milhares de brincadeiras, porque “enquanto está ocupado ou distraído não pensa na comida”.
A pequena Sofia, que tanto sonhou em ter um irmão, dá-lhe todo o apoio e foi ela que, no dia em chegou o diagnóstico da síndrome de Prader-Willi e viu os pais derrubados, lhes perguntou: “o que mudou de ontem para hoje!?”. A verdade é que nada tinha mudado e era isso que Carla e o marido precisavam de ouvir.
“O Dinis tem que ter um lugar neste mundo”
Hoje esta família sabe que “tem que viver o melhor possível” e todos os dias são uma luta constante, porque o Dinis “tem que ter um lugar neste mundo”.
E, a verdade, é que nesta cruzada, têm conseguido encaixar este menino num puzzle que é preenchido, na sua maioria, por perigos, vestidos de comidas processadas, carregadas de sal, açúcar ou conservantes, ou artificias, ricas em calorias, gorduras e aditivos químicos.
O problema será no futuro, quando Dinis não puder estar sob o olhar da supervisão. Carla confessa que há histórias de outras crianças que “procuram, de forma desenfreada, comida nas cozinhas de casa e o desespero é tanto que até vão ao congelador e comem carne ou rissóis congelados. Outros vão ao lixo para se saciarem”. Também há casos de pais que fecham a cozinha e dormem com a chave, como forma de conseguirem travar a compulsão dos filhos que se tornam uns verdadeiros “ladrões de comida”.
Mas enquanto esse tempo não chega, Carla está apostada em ajudar a mudar o que colocamos no prato. Para nosso bem e dos nossos filhos. Para já, é certo que além de ter um olhar doce, Dinis “é um menino muito feliz”. E esta família promete continuar a lutar pela sua felicidade, porque todos sabemos que a vida à nossa volta pode ajudar ou magoar e Carla quer evitar a segunda hipótese.